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Virgínia Martin - 24/01/2019 17h24 | atualizado em 24/01/2019 17h46

“Quando um homem age de forma violenta contra uma mulher, inconscientemente, está reproduzindo tudo o que lhe foi ensinado desde o começo da vida em sociedades humanas” Foto: Arquivo Pessoal

Há 19 anos, Estela Willeman tem desenvolvido uma trajetória intelectual e profissional voltada para as questões relativas às mulheres e às relações sociais de sexo. Graduada em Serviço Social, atua com pesquisas científicas, publicações e atuação em diversos grupos. Estela se especializou em Gênero e Sexualidade (Medicina Social/Uerj), tem Mestrado em Serviço Social (PUC-Rio) e Doutorado em Educação (PUC-Rio). Hoje leciona na UNISUAM, no Rio de Janeiro.

Na batalha em defesa de mulheres agredidas, a professora atua na DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), nas Secretarias de Assistência Social e em Rodas de Conversa de Mulheres. Presta assessoria e consultoria a pessoas, grupos e instituições que também trabalham por esta causa, a fim de evitar o aumento do número de violência doméstica e consequente feminicídio.

Convidada pelo Pleno.News, Estela aceitou participar da série de reportagens sobre um tema alarmante e que tem preocupado famílias de todas as classes e credos.

Diante de sua experiência, como se originam (motivações psicológicas) os casos de violência contra mulheres? Como o homem pensa e no que se baseia como detentor do direito de matar?

Na sociedade ocidental patriarcal em que vivemos, estruturada hierarquicamente por relações sociais de sexo, os homens são educados para dominar e para submeter tudo e todos aos seus desejos, ignorando completamente os ritmos e desejos à sua volta: seja da mulher, da criança ou mesmo dos fluxos da natureza.

Ao homem é estimulado, desde a mais tenra infância, que sempre vença, custe o que custar. É proibido transparecer qualquer sinal de sensibilidade ou de fraqueza. É proibido falir, falhar, sentir, temer. É exigido do homem, desde muito pequeno, que apresente resultados e que se isole subjetivamente de tudo o que possa interferir nesta tarefa.

Na moral da família tradicional brasileira, o que faz do homem “Homem” é ele ser capaz de prover financeiramente o lar, defender fisicamente a família de ameaças externas e ser um reprodutor com virilidade suficiente para gerar muitos filhos. Um homem incapaz de qualquer um destes quesitos tem imediatamente sua masculinidade questionada, não sendo considerado “homem de verdade” ou “homem com H maiúsculo”.

Essa base de formação acaba influenciando nesse processo destrutivo, certo?

Desde pequenino, o menino ouve frases como “vai ser um garanhão, vai “pegar” todas as menininhas”; “menino não chora. Seca esse rosto!”; “seja corajoso, você é um homem ou é um rato?”; “prendam suas cabras que meu bode está solto”, “mulher minha é na rédea curta”; “filho meu é sim, senhor, não, senhor”. Estas e outras frases que evidenciam relações sociais (e de poder) são fortemente baseadas em hierarquias e desigualdades. Elas afirmam e reafirmam valores que definem e provam o tempo todo o que é ser Homem nestes moldes, impedindo outros formatos de masculinidade e de relações sociais de sexo.

Neste modelo, homens precisam estar em um patamar subjetivo e material agressivo e superior aos demais seres, porque acreditam que apenas em relações hierárquicas assimétricas e de dominação poderão ser respeitados. O homem tradicional apenas respeita outro homem igual a si. Isto, evidentemente, por temer que o outro possa ser tão tirano quanto ele mesmo é ensinado a ser.

E quanto às mulheres?

Já às mulheres é ensinado o oposto: mulheres devem ser pacatas, sensíveis, emotivas, submissas, tolerantes, introspectivas, cuidadoras “por natureza”, maternais tanto com seus filhos quanto com seus maridos e seus idosos. Devem ser monogâmicas, mas não devem expressar desejos ou autonomia. Nesta sociedade, mulheres têm a função de servir às necessidades e desejos masculinos. Este é seu papel. A elas é designado este lugar e devem, assim como os homens, provar constantemente a internalização destas regras de conduta, desta moral patriarcal que gira em torno do homem, dos seus desejos e de suas necessidades.

Isso explica um pouco da dinâmica do pensamento masculino.

É a partir deste panorama que podemos entender qual é a mentalidade predominante no homem e em suas ações conscientes ou inconscientes. Quando um homem age de forma violenta contra uma mulher, inconscientemente, está reproduzindo tudo o que lhe foi ensinado desde o começo da vida em sociedades humanas. Ele age como se este fosse um direito seu e não um direito outorgado pela lei ou por uma instituição, mas pela cultura moldada por milênios ao longo da história da humanidade.

Sua percepção se deu baseada em trabalhos com os próprios homens violentos? Como lidar com isso?

Supervisionando o trabalho técnico social que ocorria em Grupos de Reflexão para Homens autores de violência doméstica contra a mulher, pude identificar como estes homens chegavam aos grupos com a firme convicção de que os atos que cometeram não eram errados e que eles tinham “motivos” para cometer as violências contra suas companheiras. O trabalho de desconstrução da ideia de que a mulher não era sua propriedade, e sim um ser humano autônomo e digno de respeito, não acontecia de um dia para o outro, demandando muita sensibilidade, técnica e paciência dos profissionais ali envolvidos. A reflexão sobre a dignidade da mulher passava pela desconstrução de uma imagem de mulher-propriedade-do-homem e uma reconstrução de uma imagem de mulher autônoma, portadora de dignidade e direitos iguais.

Por mais que no último século tenha havido diversas ondas feministas com lutas e conquistas de direitos para as mulheres, a solidificação cultural deste novo paradigma no concreto das relações sociais de sexo apenas acontecerá de maneira lenta, gradual e não homogênea. E ainda há muito pelo que se lutar e normalizar nas relações para que se possa ter, de fato, uma sociedade livre e justa para todas mulheres.

Homens precisam ser reeducados. Mulheres precisam ser melhor instruídas. Como ensinar às mulheres que elas devem estar atentas aos sinais sintomáticos de que aquela relação oferece risco?

Além do básico que é conhecer os direitos, as políticas públicas e os dispositivos de proteção, atualmente, há dois aspectos que têm sido muito trabalhados com mulheres: o “autoconhecimento” e o “autocuidado”. É importante que as mulheres conheçam seus corpos, seus desejos, se amem, se cuidem e compreendam o que as deixa felizes, o que as machuca. Além de trabalhar a autoestima, a quebra de padrões limitantes em termos de estética e prazer – e isso é muito pessoal, vai variar de mulher para mulher – estas práticas promovem um fortalecimento da autonomia feminina para enfrentar diversas quebras de paradigmas e a luta pela felicidade do seu jeito.

Engana-se quem acha que são apenas aspectos econômicos que mantém mulheres presas a relações infelizes (seja por violência física, psicológica, patrimonial, moral ou outras). Muitas vezes, o que mantém uma mulher numa relação desigual é a sensação de que sem um homem ao seu lado ela jamais conseguirá ser respeitada, amada ou produzir algo por si só.

Seria isso um desvio de auto-engano, uma ilusão descontrolada?

O mito do amor romântico operou uma verdadeira tragédia na vida das mulheres de nossa época, porque as mulheres foram criadas para se casarem e terem filhos do amor de sua vida. Mas ninguém contou para elas que o amor da sua vida poderia traí-la, poderia bater nela ou aniquilar sua autoestima, impedindo esta mulher de se realizar intelectual ou profissionalmente como um ser humano autônomo.

Para além dos sinais que um homem violento dá (e que a maior parte de nós já conhece bem), que é começar sutilmente levantando a voz e progressivamente ir adicionando mais expressões de violência até chegar à violência física explícita, quero chamar atenção às formas de violência psicológica praticadas pelos homens. Elas são a raiz da dominação masculina e mantém mulheres consideradas autônomas, reféns de relações cruéis por longos períodos, às vezes, por uma vida inteira.

Quais são estes sinais?

Há alguns sinais importantes que não podemos ignorar. Se um ato, fala ou comportamento do seu companheiro ou companheira te agride, te entristece, te humilha, por mais que pareça mínimo, por mais que seja sutil, pare para pensar sobre isto e avalie se quer permanecer nesta relação. Se, na sua relação afetiva, seus projetos, seus sonhos, seus desejos, sua voz não tem o mesmo peso ou a mesma importância que os projetos, os sonhos, os desejos ou a voz da outra pessoa da relação, algo está errado.

Numa relação saudável e equilibrada, ambos devem estar guarnecidos. Isso não significa que os projetos e desejos sejam os mesmos e que os caminhos do casal devam se entrelaçar simbioticamente. Nenhum dos dois deve perder a identidade individual para existir uma identidade do casal. Mas os projetos pessoais de cada um devem ser levados em consideração, respeitados, valorizados e estimulados. Às vezes, vale uma conversa, afinal, muitas pessoas relativamente “boas” podem reproduzir comportamentos não muito legais.

O primeiro passo é a conversa?

Se vivemos numa sociedade patriarcal, o mais comum é que todos acabem reproduzindo, em maior ou menor escala, o machismo e a misoginia – homens e mulheres. Uma parada para uma conversa franca e a reflexão sobre como aquilo te incomoda é fundamental para a saúde do relacionamento. Porém, se isto se repete mesmo depois da conversa e mesmo depois de a pessoa admitir que errou e parecer se arrepender, parece que a pessoa não está disposta a mudar para que ambos estejam felizes.

Você analisou casos em que homens podem atrapalhar o sucesso ou a realização pessoal das mulheres.

Em minha tese de doutorado, discuto as condições de acesso e permanência de mulheres da periferia ao ensino superior. O que mais me chamou atenção foi que as mulheres entendiam a graduação como um sonho seu e, em grande parte dos casos, este sonho era visto como um obstáculo ou mesmo era impedido por seus companheiros.

Como professora de educação superior de cursos majoritariamente femininos, acompanhei diversos casos em que as estudantes viviam verdadeiros dramas e travavam enormes batalhas com seus “companheiros” para conseguir concluir seus estudos. Desde chantagem emocional, passando por ofensas que minavam sua autoconfiança e colocavam as mulheres em dúvida quanto à sua capacidade intelectual e profissional, até violência física e humilhações públicas e mesmo casos em que estes ofereciam prêmios para que as companheiras abandonassem os estudos. Todas estas eram estratégias os homens utilizavam para impedir as mulheres de concluir seus estudos e alcançarem algum tipo de autonomia financeira, profissional, intelectual e mesmo emocional perante eles.

Portanto, é muito importante que as mulheres fiquem atentas e observem o quanto seus companheiros torcem pelo sucesso de seus projetos e contribuem para a elevação de sua autoestima e para a conquista de sua autonomia como ser humano, seja intelectual, artística, política, profissional ou outra qualquer.

O que mais chama sua atenção no trabalho de atendimento de violência doméstica e sexual?

O que ainda me assusta muito é como a misoginia (ódio ou aversão às mulheres) ainda é forte entre nós na sociedade brasileira. E como se naturalizam os atos de crueldade cometidos por homens e sempre se procura um “motivo”, uma “culpa” na mulher para um crime cometido por um homem. Os homens, conscientes ou não, agem sempre corporativamente para com outros homens, justificando e acobertando os atos de violência cometidos. Isso parece um comportamento lógico. É uma rede de proteção silenciosa e invisível, mas muito eficaz.

E quando esta aversão vem da própria mulher?

Já as mulheres, não têm nenhuma razão aparente, mas muitas ainda reproduzem este tipo de comportamento. Por um medo inconsciente, por carência e necessidade de aprovação masculina, ou mesmo por falta de senso crítico, reflexão e solidariedade para com as outras, muitas mulheres ainda tendem a culpar outras mulheres pelas violências que estas sofrem. Não é incomum reações como “mas, também, estava pedindo. O que estava fazendo com esta saia curta?”, “mas vai lá ver o que será que ela fez pro marido bater nela!” Essas e outras reações, por um lado, deslegitimam as denúncias de outras mulheres (fazendo parecer que as mesmas agiram de caso pensado, conscientes de que seus atos levariam até àquela situação e decidiram, deliberadamente, correr o risco e mesmo incitar o fato). Por outro lado, amenizam a culpa dos homens quanto a seus atos (fazendo crer que cometeu os crimes e delitos sob forte pressão emocional ou num lapso de perda de razão, não sendo esta sua natureza – portanto, um ato isolado que não deve estigmatizar o criminoso como um … criminoso).

Para mudar este quadro em geral, é fundamental a construção de espaços coletivos de escuta ativa e sem julgamentos para mulheres, mediados por profissionais especializados, a fim de construir uma nova sociabilidade pautada na empatia e na solidariedade entre as mulheres. Apenas assim deixaremos de presenciar deprimentes quadros em que é necessário que mais de 500 mulheres denunciem um criminoso que comete violência sexual de maneira contumaz, para que a justiça decida que existem indícios de crime e tome alguma providência concreta.

O que acontece depois que a mulher faz a denúncia, se afasta do companheiro e toma coragem de não mais se submeter a perigos? Ela tem garantia de vida? Consegue ter uma vida normal? Ela entra em depressão ou ela se reedita?

Lamentavelmente, a mulher que oferece denúncia contra seu companheiro em casos de violências graves, onde há risco de morte, ainda não tem todo o amparo necessário do Estado para se considerar livre de perigos e pronta para viver uma nova vida, sem prejuízos. Porém, na maior parte dos casos, o processo de denúncia faz com que casos de violência, pontual ou menos graves, parem de acontecer ou, ao menos, diminuam, já que muitos homens não acreditam que a mulher vá tomar a iniciativa de denunciar. Quando a formalização da queixa acontece e o processo torna-se um fato, com a atuação de agentes públicos de justiça, em geral, o agressor teme pelas consequências de seus atos.

Nos casos em que a mulher sofre graves ameaças à sua vida, em geral, é necessário contar com a ajuda de familiares e amigos para mudar de endereço, conseguir um novo emprego ou sobreviver da ajuda até conseguir prover seu sustento e de seus filhos, quando os há.

A quantidade de abrigos para mulheres que recebem o direito à medida protetiva é insuficiente e a estrutura proporcionada pelo Estado apenas garante abrigo, mas não emprego e integração aos estudos, ficando a mulher confinada, em uma situação similar a uma prisão, já que, sob o risco de morte, fica impedida de ir e vir com a mesma liberdade que possuía. O trabalho em abrigos desta natureza é desenvolvido no mais absoluto sigilo e com muita dedicação por parte das equipes responsáveis. Entretanto, ainda em número insuficiente, dada a demanda existente.

Há alternativas para um recomeço?

Muitas mulheres optam por procurar alternativas por conta própria, na tentativa de recomeçar uma nova vida o mais normal possível, o que não acontece nos abrigos. Todo começo é difícil, principalmente quando vem acompanhado de uma decepção tão grande já que, como dito acima, o mito do amor romântico cria ima imagem idealizada de marido herói, príncipe encantado que vai salvar a mocinha das agruras da vida e protegê-la das ameaças do mundo.

Existem mulheres que passam a infância e a juventude dedicadas ao planejamento de um casamento perfeito. Enfrentar a realidade de que o príncipe encantado não só não vai protegê-la como, na verdade, é quem quer acabar com a sua vida, é um processo difícil de elaborar para qualquer uma, causando, na maioria dos casos, dores quase insuperáveis. Estes processos causam forte sofrimento psíquico com, não raro, consequências para a saúde física destas mulheres, demandando atenção delicada dos serviços de saúde, saúde mental e cuidados, em geral.

A boa notícia é que, a cada dia que passa, mais e mais mulheres têm tido acesso a espaços de diálogo, reflexão e desconstrução de mitos como o amor romântico, a maternidade compulsória, o príncipe encantado salvador e outros modelos de relações limitados que não correspondem à realidade de pessoas que estão fora dos contos de fadas, vivendo vidas reais e muito mais complexas. Definitivamente, em pouco tempo, não haverá mais espaço para relações assimétricas entre os sexos e quem não se adaptar a sociabilidades mais sensíveis, humanas e igualitárias, tenderá a não encontrar um par.

No Brasil, o DISQUE DENÚNCIA tem sido um dos canais para apoio no resgate de vidas e no combate à violência doméstica. Trabalha para dar apoio emocional, prevenir agressões, punir o agressor e proteger a mulher agredida. Para pedir ajuda, ligue para o número 180. E ainda para o número 100, um serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O sigilo é absoluto.

 

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