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Concertista desmistifica música clássica no Brasil

A pianista Simone Leitão fala de incentivos, carreira, mitos e sugere que a música clássica seja promovida até em novelas

Virgínia Martin - 15/03/2019 12h25 | atualizado em 15/03/2019 12h50

A carreira de Simone Leitão é marcada por muitos diferenciais. Com uma vida inteira dedicada ao estudo da música, ela adquiriu não apenas mãos firmes e fortes para dedilhar maravilhosamente o piano, como obteve sua formação em cursos de mestrado e doutorado no exterior.

Mas a pianista e concertista internacional tem pura alma brasileira. É mineira e filha de nordestino, criada em lar evangélico. Possui uma ONG chamada Academia Jovem Concertante, é a mais nova entre 12 irmãos e é mãe do Nathan, de 22 anos, que também é músico. Simone possui CDs gravados e se apresenta como solista mundo afora.

Simone também é irmã da comentarista de economia, Miriam Leitão. Ela lembra que, entre tantos partos da mãe, uma fala foi simbólica. Ao nascer o penúltimo filho, a mãe de Simone disse: “Ainda não veio minha pianista” e engravidou quatro anos depois, mesmo com riscos de problemas de saúde. Assim nasceu Simone, a filha pianista, que garante nunca ter sido forçada a estudar o instrumento.

Com muita simpatia e plena convicção de que escolheu a melhor forma de viver, Simone recebeu o Pleno.News para uma tarde de entrevista e fez questão de afirmar que “um dia sem tocar piano é um dia desperdiçado na existência”.

Esta paixão pela música e pelo piano foi natural?

Nunca quis outra coisa na vida. Com seis anos, eu disse: “Mãe, já tenho seis anos, preciso estudar piano”. E fui traçando meu caminho. Procurei a professora de uma amiga, me organizei e, já com um espírito de empreendedora, batalhei para me tornar uma pianista clássica.

Se eu vivo hoje no Brasil e se eu tenho uma carreira, é porque eu tenho um subsídio

Como foi esta rota profissional?

Fiz faculdade na UNIRIO. E também estudei com uma professora maravilhosa, a Linda Bustani, que tinha acabado de chegar de Moscou. Dela recebi todo treinamento para ser uma concertista. Depois fui para a Noruega para estudar com um professor. Tive a oportunidade de morar lá para cursar meu mestrado de 1994 até 1996. Minha formação era clássica, mas foi tocando jazz e música brasileira à noite que consegui pagar minhas despesas naquele país.

De volta ao Brasil, fui trabalhar como professora na Escola Americana, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, onde fiquei por seis anos. Foi uma época muito difícil, porque o Nathan era pequenininho, nascido no final de 1996, e eu não podia tocar piano como antes. Conseguia fazer apenas de três a quatro concertos por ano. E isso não é bom, porque é preciso estar sempre desenvolvendo nossa performance no palco. É preciso tocar perfeito, tocar tudo de cor e com uma superinterpretação.

Como encarou este tempo de pausa?

Eu entendi como uma parada até mesmo para ser mãe com mais facilidade. Por um lado, eu estava feliz com minha vida pessoal. A profissional, no entanto, estava um nada.

Quando Nathan fez sete anos, comecei a colocar em ação um plano que eu havia reorganizado em minha cabeça a fim de buscar novos caminhos. Consegui uma bolsa de estudo na Universidade de Miami (USA) para cursar o doutorado. Neste período, eu também trabalhava tocando em uma sinagoga, aos sábados e domingos, e ainda regia um coral de uma igreja presbiteriana. Fui retomando minha carreira aos poucos.

O brasileiro tem essa mania de achar que quem está ótimo mora lá fora

É verdade que você foi aprovada por causa da matemática?

No primeiro ano, ganhei uma bolsa parcial. No segundo ano, competi com 32 inscritos para apenas uma vaga, a fim de ganhar a bolsa integral. Eu e um candidato romeno ficamos empatados. O que me aprovou foi uma prova de matemática. O diretor do curso disse que minha pontuação parecia a de um asiático fera em matemática.

E como é viver de música no Brasil?

Não tem como sobreviver no Brasil com música clássica. Não se paga ingressos para assistir música clássica no país. Qual foi a última vez que você pagou 200 reais para assistir a um concerto? Você não pagou. Ninguém paga. O público só vai quando é gratuito. Por quê? Porque quem subsidia são as empresas, por meio da lei do incentivo.

Ou seja, a Lei Rouanet?

Vamos falar da Lei Rouanet que todo mundo demonizou. Eu sou um resultado positivo da Lei Rouanet. Se eu vivo hoje no Brasil e se eu tenho uma carreira, é porque eu tenho um subsídio. Os ingressos para meus concertos custam entre 30 e 40 reais. E ainda assim eu doo um monte de entradas. Só um apoio pode manter a música clássica funcionando.

A Academia Jovem Concertante capacita jovens talentosos do Brasil inteiro e os direciona para o mercado de trabalho

A Simone Leitão é mais valorizada aqui no Brasil ou lá fora?

O Brasil tem essa mania de achar que não valoriza os seus. Eu não sinto isso. Talvez porque tenha uma boa autoestima. Não fico preocupada.

O que me incomoda não tem nada a ver com valorização exatamente. Se eu chego na Europa, se estou na mesa de um restaurante e me apresento, o tratamento muda. A pessoa diz: “Você que é Simone Leitão, pianista brasileira?” Na mesma hora a pessoa me trata como uma realeza. Isso se dá porque o europeu tem noção do que é ser um pianista, o que custa ser um pianista, sabe que a pessoa fica horas se dedicando e estudando piano, sabe que tem que ter tenacidade para manter a carreira, tem que ser forte em muitas vertentes e aguentar muita coisa.

O olhar do brasileiro sobre música clássica é diferente?

Na imigração, por exemplo, se eu chego nos Estados Unidos e digo que sou pianista, eles nem perguntam mais nada. No Brasil, geralmente, me perguntam: “Mas você vive de música?”, “Mas como você consegue?” Perguntam o porquê de eu não ter ido embora do país. Eu digo que faço muito concerto no Brasil, vivo aqui e sou reconhecida aqui. O brasileiro tem essa mania de achar que quem está ótimo mora lá fora.

E hoje, o que tem desenvolvido?

Tenho feito, aproximadamente, 40 concertos por ano. E isso é resultado de um pedido que fiz a Deus. Pedi uma carreira e, pelo menos, 30 concertos por ano. Também sou diretora do Festival Internacional de Música de Câmara do Rio de Janeiro, que eu criei. Eu mesma faço a captação de recursos para minha carreira, verificando possibilidades no meio empresarial. Mas, evidentemente, desses 30 a 40 concertos que faço anualmente, posso dizer que ⅔ deles são convites para que eu me apresente.

A TV brasileira poderia inserir mais a música clássica em seu conteúdo, como em novelas e séries. Não custava nada

Nunca parou de estudar?

O estudo é diário. E, mesmo quando eu estava criando o Nathan, uma vez por ano eu ia para Nova Iorque e ficava um mês e meio fazendo um curso na Manhattan School of Music.

Você é irmã da Miriam Leitão. Ela te dá dicas de economia?

Ela já desistiu disso (risos). Mas a Miriam se preocupa muito mais com a vida humana, com a melhora da qualidade de vida do brasileiro, com as injustiças. Miriam fala de economia, mas ela é muito mais de humanidade. É uma pessoa muito abençoada. É outra que não sai do quarto sem ter combinado tudo com o Eterno.

E sobre seu próprio projeto de inserção de música clássica pelo Brasil?

O projeto é chamado Academia Jovem Concertante, que leva música sinfônica para lugares que não têm acesso. Nós tínhamos uma semana programada em janeiro para estar no Pará, mas foi adiada. Acima de tudo, a Academia Jovem Concertante capacita jovens talentosos do Brasil inteiro e os direciona para o mercado de trabalho.

O que percebe dos vários projetos de música clássica pelo Brasil?

Na cidade de Barra Mansa (RJ), você tem o Músicas nas Escolas. Em Niterói (RJ), existe a Orquestra da Grota. Na Bahia existe um grande projeto de música, o Neojiba, que tem núcleos na Bahia inteira. Acabei de tocar com a orquestra deles em dezembro.

Vejo que esses projetos pegam crianças que estão em situação de risco e dão a elas uma educação musical que os meninos da elite não têm. Então, eu consigo conversar de igual para igual com uma menina da periferia de Salvador sobre Beethoven. Isso é uma revolução muito doida. Essas crianças sabem quem são os pianistas e compositores clássicos, sabem o que é uma ária. Mas as crianças ricas não sabem, porque nossa elite não está sendo educada.

Só que nem toda brasileira é sambista, nem toda pianista vai querer morar na Itália, nem toda pessoa que mora na favela vai ouvir só funk

O que acha que pode ser feito?

Acho, por exemplo, que a TV brasileira poderia inserir mais a música clássica em seu conteúdo, como em novelas e séries. Não custava nada. Poderiam fazer cenas e cenas com esta temática.

Mas é aquela velha história de nosso estereótipo. A pianista só toca no exterior. Ou a estudante de música deveria ser sambista etc… Só que nem toda brasileira é sambista, nem toda pianista vai querer morar na Itália, nem toda pessoa que mora na favela vai ouvir só funk… Está faltando um pouco mais de entendimento, porque a vida está muito mais diversa do que a gente imagina.

E quanto a tocar em igrejas?

Nos Estados Unidos, durante uma época, trabalhei em igrejas tocando órgão de tubo. Trabalhava na Luterana, de manhã cedinho. Depois ia para a Presbiteriana. Tocava em três cultos no mesmo domingo de manhã. Era uma loucura.

Hoje sou membro da Igreja Presbiteriana da Gávea e, quando posso, também toco lá.

Deixem os hinos serem hinos. Hino é uma música do século XIX. Não tem problema serem como foram escritos para ser

E o que pensa das atuais canções que são cantadas nas igrejas?

Por exemplo, acho que a Hillsong colocou todo mundo igual, enlatou todo mundo naquele tipo de música. Acho que as igrejas brasileiras podiam ser mais audaciosas se misturassem um pouco mais as tendências, os ritmos e as influências.

Sobre hinos, deixem os hinos serem hinos. Hino é uma música do século XIX. Não tem problema serem como foram escritos para ser.

Se é marcha, deixa ser marcha. No século XIX, a marcha era uma coisa boa, porque era um século de grandes revoluções e de guerras. Marcha significava alegria, triunfo.

Quando toco hino na igreja, gosto de elaborar bastante o hino para ele ficar como tinha que ser no século XIX. Mas tem gente que pega o hino e faz com que fique acelerado ou lento demais, acrescenta gemidos, achando que estão modernizando o hino. E se o hino está ficando chato, acabam fazendo uma outra música com ele.

Louvor na igreja

O louvor é nossa vida. Se você está na igreja, sabe que pode ter hino, bateria, palmas, mas você está ali para louvar a Deus. Se o seu coração estiver no lugar certo, nada vai incomodar você.

Já ouvi muitas coisas desafinadas na igreja, já ouvi muita bateria fora do lugar, já ouvi muito baixo que não entrou na hora certa, mas nada disso me incomodou porque eu estava na casa do Pai. Se eu estou na casa do Pai, não tenho que ficar decidindo como vai ser e achar que tudo deve estar perfeito. Não somos perfeitos. Eu começo a orar às cinco da manhã e às seis já estou pecando.

Penso que, tanto musical quanto tecnicamente, muito pode ser feito. Tudo pode ser elaborado com mais propriedade, mais trabalho, mais estudo. Ao mesmo tempo, acredito em processos. Fiz doutorado em História da Música e percebo que tudo é um processo e que não adianta interferir.

Já ouvi muitas coisas desafinadas na igreja, já ouvi muita bateria fora do lugar, já ouvi muito baixo que não entrou na hora certa, mas nada disso me incomodou porque eu estava na casa do Pai

Que repertório mais gosta de tocar?

Difícil falar sobre isso. Já gravei um CD todo de Bach. Acho que isso já diz alguma coisa. Toco muito Rachmaninoff, que é um compositor russo. Gosto de Beethoven, de Villa Lobos. Sim, toco compositores brasileiros. Aliás, na Itália sempre me pedem que a metade do repertório seja de compositores brasileiros.

Qual piano você tem em casa? E, toca todo dia?

Tenho um da Steinway com dois metrôs e quinze. Tem que tocar todo dia, mas nem sempre a gente consegue tocar por alguns motivos. E aí eu chamo de um dia mal vivido. O dia em que não toquei foi um dia que não vivi direito.

E o que este instrumento provoca em você?

Quando consigo tocar todas as notas certinhas, fico muito feliz. O piano é a minha voz. O piano é o meu companheiro, é minha extensão. Tem dias que, antes de dormir, eu sempre abraço ele. Ele é enorme, mas eu dou um jeito. Meu piano é uma delícia e tenho muita gratidão por ter conseguido comprar esse piano bom e raro.

Fale de sua fé em meio ao seu trabalho.

Eu não conseguiria ter feito nada do que eu fiz, ser nada do que eu sou se não fosse Deus. Não falo isso porque é bonito falar. É verdade. Deus abriu portas para mim quando eu pedi, fechou outras, porque sabia onde ia me levar. Se um dia Deus falar: “Você vai parar de tocar piano”, eu paro de tocar piano. Mas Ele sabe que toco para Ele.

O dia em que não toquei piano foi um dia que não vivi direito

Que público mais impressionou você?

Fiz uma turnê bem grande na China e fiquei impressionada. Lá você toca para duas, três mil pessoas. Meus maiores públicos foram na China. Também tenho tocado na América do Sul. E este público valoriza a música clássica. Eles têm cada teatro maravilhoso, lotam os lugares e choram. É um público maravilhoso.

Seu filho também é músico?

Nathan é compositor e cantor. Seu segmento é música popular brasileira, mas com fundo cristão. Ele também está no Spotify e o último EP dele se chama Cidade Vazia. Sempre tem uma forma de passar a mensagem cristã.

Meu filho é minha maior obra de arte. Faz faculdade de Cinema e também é da Igreja Presbiteriana. Posso dizer que tenho a maior felicidade do mundo porque, mesmo com essa vida doida que escolhi, consegui ser mãe e criei Nathan nos caminhos de Deus.

Quais são os próximos concertos?

Neste ano de 2019, vou tocar várias vezes na Europa como convidada. E também vou tocar na Estônia, onde nunca fui. Vou para Grécia também e para Costa Rica. E há outros concertos no Brasil, como na Sala Cecília Meirelles, no centro do Rio, em 22 de março. Em junho vou para Minas e em julho para o Festival Campos do Jordão. Agosto, setembro, outubro e novembro são os meses que têm mais concertos.

Fale um pouco sobre a música clássica.

A música clássica nasceu na Igreja Católica. Foi dentro das abadias que se inventou a escrita da música. Isso começou com Gregório Magno, o papa que quis unificar a fé. Por isso foi criado o canto gregoriano. Mas para que todas as igrejas pudessem tocar e cantar uma mesma coisa, tiveram que inventar a escrita. E assim surgiu a partitura.

Depois, a partitura foi desenvolvida nos palácios, sendo servida ao ego dos monarcas. E, com um espírito de competitividade, cada um dizia que sua orquestra, que seu maestro, que seu compositor, eram melhores que o do outro monarca.

A orquestra se expandiu e passou a ser patrocinada pelos grandes regimes e até mesmo pelas universidades. Com o fim da aristocracia, surgiu a preocupação com a manutenção das orquestras. Afinal, eram direcionadas às elites.

Atualmente, as orquestras sobrevivem nas mãos dos investimentos privados, dos patrocinadores. Se cessarem os patrocínios, a música clássica também cessa.

Só que as orquestras também movimentam a economia criativa do país. Cada real investido na cultura volta em forma de emprego e outras oportunidades de trabalho. A Alemanha, por exemplo, entende que a arte é parte do seu PIB. Lá, mais de 10% do PIB vem da arte.

Eu entendo que a arte, em geral, pode ser nosso maior produto de exportação. Principalmente a música. Tanto a música popular, quanto a clássica. O Brasil tem o chamado softpower.

Eu vou muito à França. E lá, o francês escuta mais música brasileira do que música americana. Era pra gente usar isso de forma mais agressiva no sentido de instalar uma identidade brasileira no mundo, ao invés de ficarmos passivos.

Para que todas as igrejas pudessem tocar e cantar uma mesma coisa, tiveram que inventar a escrita. E assim surgiu a partitura

Mencione um alvo em sua vida.

Na Inglaterra, tem o maior festival de música clássica do mundo, que é o Proms, que acontece no Royal Albert Hall, no período de três meses. Todas as noites têm concertos com cinco mil pessoas assistindo. O sonho da minha vida é tocar nesse festival.

CDs de Simone Leitão

– RECITAL – gravado em 2011, nos Estados Unidos.
– BACH – gravado em 2017, com excelente crítica da Grammofono (a revista mais importante de música clássica da Inglaterra).

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