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Como vive o preso no Brasil e a crise no Ceará

Especialista em sistema prisional expõe bastidores das prisões e explica a crise no estado do Ceará

Virgínia Martin - 11/01/2019 18h09 | atualizado em 11/01/2019 19h39

Enquanto o Brasil assiste ao estopim causado pela crise no sistema carcerário, há profissionais que militam na área em busca de ajuda e soluções. Newvone Ferreira da Costa é uma destas pessoas que, do alto de seus 32 anos de experiência, tornou-se especialista em sistema prisional.

Newvone é formada em Assistência Social. Atua como coordenadora da linha de pesquisa Violência e Sistema Penitenciário da UNISUAM, onde leciona Criminologia Psicossocial e Violência e a Criminalização Social. Ela costuma dizer que “sentou nas duas cadeiras”, sendo técnica e gestora nesta área de criminologia, pois além de ter sido assistente Social do Sistema Penitenciário no Rio de Janeiro por 32 anos, também foi diretora do presídio Edgard Costa, em Niterói (RJ), por cinco anos.

A professora foi eleita como membro do Comitê de Combate à Tortura da ALERJ, representando o Fórum Permanente de Saúde do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 2016 a 2018. Sua trajetória no Serviço Social possui ênfase no campo sociojurídico nos seguintes temas: supervisão em serviço social, prisão, adolescente com medidas socioeducativas, família, ato infracional, execução penal, violência, criminologia e segurança pública.

Também fez Especialização em Ciências Criminais em Londres (UK), em 2015. E, recentemente, foi condecorada comendadora pelo deputado Rogério Lisboa, que hoje é prefeito de Nova Iguaçu, devido aos seus préstimos enquanto funcionária pública no sistema prisional.

Após três décadas de convívio com o meio carcerário, qual é a sua percepção sobre o criminoso?

O criminoso, ao meu ver, é um produto do meio, é fruto de uma sociedade extremamente desigual. Não tiveram oportunidades para estudar e trabalhar e aí surge a oportunidade do crime, que é muito mais fácil.

Para mim, um homem que foi julgado e condenado, não importa o crime que tenha cometido, precisa ser ressocializado de uma forma correta. Se ele não teve uma adaptação na sociedade, se não teve essa reeducação, que ele consiga ter por trás dos muros. Acredito nisso porque trabalhei isso.

Um criminoso que vai para dentro dos muros precisa de estudo, de trabalho, de boa ocupação lá dentro. A lei de Execução Penal é muito clara sobre isso. E não fui eu que inventei, mas os legisladores. Ela defende cinco assistências ao preso: assistência à saúde, religiosa, ao trabalho, social e material. O Estado tem que prover este conjunto.

Se um detento recebesse as cinco assistências previstas em lei, ele sairia muito melhor do que sai hoje da prisão. Mas, atualmente, o preso não tem uma escova de dente, um colchão. Travesseiro e lençol são luxo. Estou falando sobre pasta de dente e sabonete, ou seja, o mínimo para que esse homem sobreviva lá dentro.

Quando um homem é colocado em uma masmorra, como o Ary Franco, no Méier, ou em Água Santa, que é a pior unidade prisional que o Rio de Janeiro tem, já que fica abaixo do nível da rua e a última galeria não recebe sol, como você acha que esse homem vai sair da prisão quando obtiver sua liberdade? Como sai da prisão um homem que fica preso por 20 anos ali dentro sem fazer absolutamente nada? O que é necessário é uma política penitenciária nacional. E que todos os estados cumpram essa política.

Um preso hoje custa 1.800 reais ao governo. Só no estado do Rio de Janeiro temos 50 mil presos. Faz o cálculo do custo. Só que este valor de 1.800 é para comprar materiais para o detento, que não recebe nada além de comida. Mas nada é feito. A lei não funciona. Mas dinheiro tem. Basta checar na Assembleia Legislativa, na Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, para ver que a verba para 2019 já foi orçada em 2018.

COMO SAI DA PRISÃO UM HOMEM QUE FICA POR ANOS EM UMA MASMORRA SEM FAZER ABSOLUTAMENTE NADA?

Então, são questões muito severas que acontecem no sistema prisional e as pessoas desconhecem. E a sociedade pensa que aquele sujeito que furtou um celular deve ser preso. Sim, mas um dia ele vai sair. Ele não vai ficar lá para sempre. Não temos prisão perpétua.

E quanto a um criminoso que estupra e mata mulheres, é preso e depois de solto volta a matar?

Vamos raciocinar. Se ele é um estuprador, ele precisa de um tratamento psiquiátrico. Normal ele não pode ser. Então, vai precisar de acompanhamento com psicólogos e psiquiatras.

Newvone foi condecorada comendadora pelos préstimos enquanto funcionária pública no sistema prisional Foto: Pleno News

Como avalia as rebeliões nos presídios, considerando o que está acontecendo no Ceará?

O que acontece dentro do sistema prisional é o seguinte: os presos conhecem a lei de Execução Penal melhor que qualquer advogado. Para o preso, não pode faltar comida, saúde, religião, defensoria pública. Não deixe um preso sem defensor público. Caso contrário, ele fará alguma coisa, seja uma rebelião, um motim ou atear fogo em algo. Ele quer aparecer.

Fui diretora de unidade prisional e posso garantir: o preso avisa que a coisa está ruim. A mesma lei de Execução Penal diz que o diretor de um presídio tem que dar audiência semanal aos presos. É nesta ocasião que ele sinaliza sobre o que está acontecendo.

Para acontecer o que está acontecendo no Ceará é porque os presos já vinham avisando há muito tempo. Mas essa é apenas uma questão do problema.

A outra questão é o problema da facção. O Brasil e as autoridades não têm enxergado ou não querem enxergar que existe uma grande facção criminosa no Brasil chamada PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo. Está dominando o Brasil, já está em vários estados se unindo a várias outras facções. Espero que o novo Ministro da Justiça abra os olhos para isso. Enquanto você não neutralizar o PCC, você terá este tipo de conflito como no Ceará. Basta você assistir ao filme Salve Geral, que retrata o PCC. A própria facção diz que vai dar um “salve geral” no Brasil. E pode fazer isso em qualquer estado, pois está no país inteiro.

Então, o “salve geral” está no Ceará?

Aconteceu no Ceará. Mas poderia ter sido no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Não adianta fechar os olhos. Temos que ver de que forma vamos trabalhar isso. É muito sério. As tropas nacionais foram para lá e não adiantou absolutamente nada. Até porque o PCC está se juntando ao Comando Vermelho.

BASTA VOCÊ ASSISTIR AO FILME SALVE GERAL, QUE RETRATA O PCC. A PRÓPRIA FACÇÃO DIZ QUE VAI DAR UM “SALVE GERAL” NO BRASIL.

E sobre as facções dentro dos presídios?

Enquanto aqui do lado de fora não ficar resolvida essa política, lá dentro é a mesma coisa. O grande problema do preso ao chegar na unidade prisional é que ele já é tratado por uma facção, dependendo de seu local de moradia. Ele é uma carta marcada. Por exemplo, quando ele chega, o agente penitenciário pergunta onde ele mora. Se ele responde “favela da Mangueira”, já classificam ele como sendo do Comando Vermelho, mesmo que o novo detento não queira. Ali naquele momento, o preso passa a ser marcado.

No Ary Franco, muitos presos me falavam: “Dona Newvone, eu não sou de facção, me tire do Comando Vermelho. Eu não sou facção. Eu assaltei sozinho, não pertenço a uma facção”. Mas o próprio Estado o coloca como facção, dependendo de onde ele mora.

Como funciona esta logística prisional?

Dividir em facções fica mais fácil. Eles têm uma galeria de Comando Vermelho, uma galeria de Terceiro Comando. Pode ter uma galeria de milicianos. É a logística do sistema prisional do Rio de Janeiro. E o sujeito não tem o direito de dizer “eu não sou isso”.

E como funciona o item saúde?

Os presos estão morrendo como se fossem bichos lá dentro. Existe uma política nacional de saúde do sistema prisional, que é aplicada em pouquíssimos estados. Porque ela tem que ser municipalizada também.

No Estado do Rio, apenas São Gonçalo e Itaperuna são municipalizados. O prefeito de Itaperuna, por exemplo, aceitou a verba que vem em nível federal para equipar a saúde do sistema prisional naquela unidade. O resto está morrendo de tuberculose, de lepra. Como as unidades prisionais estão super lotadas, qualquer doença é facilmente transmitida.

A assistência religiosa funciona bem?

É a única que funciona. Porque não é vinculada à secretaria. A secretaria organiza a assistência religiosa, mas o credo é de cada igreja.

Elas vão e fazem a evangelização. Igrejas batistas, assembleia de Deus, Universal, espíritas, pastoral carcerária, não são vinculadas à política ou ao Estado. Aí funciona. Estas iniciativas religiosas não precisam do Estado. Precisam de parceiros. O Estado só vai organizar. Assim, os presos saem melhor do sistema prisional.

Sempre falo em minhas palestras que o preso precisa de duas muletas para conseguir viver no inferno: família e religião. Eu mesma conversava com eles que deveriam acreditar em qualquer coisa, nem que fosse um gnomo, uma fada. É se agarrar em uma crença para conseguir sair aqui de dentro numa boa.

E a família é o suporte do preso. Sempre tem uma namorada, uma amiga, a mãe, que não larga o preso. Mãe é mãe.

E o presídio feminino?

Sim. A gente está falando dos presos masculinos. Agora vou para as presas femininas. Elas não têm absorvente, por exemplo. Estão usando miolo de pão. A presa mulher sofre muito mais que o homem, principalmente por causa dos fluxos menstruais. O Estado não está comprando absorvente para elas.

O Código Penal foi feito para o homem, não para a mulher. Nós não temos o direito de ter uma prisão especial, mesmo se tivermos ensino de terceiro grau. Mesmo com todo mestrado e doutorado, vai parar no Talavera Bruce, o presídio feminino mais antigo que temos no estado do Rio.

DETENTAS FEMININAS NÃO TÊM ABSORVENTE, POR EXEMPLO. ESTÃO USANDO MIOLO DE PÃO.

Como funciona o auxílio reclusão hoje?

É preciso esclarecer sobre o auxílio reclusão e benefícios do INSS para os filhos do preso. O benefício vem a partir do momento em que ele trabalhou por doze meses consecutivos com carteira assinada, no ano em que foi preso. A partir daí, a família do preso pode recorrer ao auxílio reclusão, porque esse dinheiro é para os filhos, não para ele. O INSS entende dessa forma. Então, não são todos os presos que recebem porque nem todos têm carteira assinada.

Qual a rotina de um detento?

De manhã ele toma café e depois fica na cela sem fazer nada. Um bando de homem junto. Tem banho de sol quando tem espaço na unidade. E ainda tem a logística para separar os segmentos de preso. Não dá para misturar uma facção com a outra. Um não pode se encontrar com o outro.

O que o diretor faz? Junta três segmentos de presos para dar espaço. Coloca para o banho de sol os presos Maria da Penha, pensão alimentícia e evangélicos, que não gostam de se misturar com os outros. O restante tem que ser separado. Mas se só existe um pátio, como faz?

E os presos fazem suas necessidades em um buraco chamado boi. E se alguém morrer, será menos um bandido para contabilizar.

Acha que o novo governo vai fazer alguma coisa para melhorar esta crise?

Gostaria muito que ele fizesse o cumprimento de lei. Só isso. Cumpra a lei de Execução Penal e tenho certeza de que vai dar tudo certo.

O que pensa sobre as visitas íntimas?

Nos Estados Unidos existe o maior índice de estupros dentro das prisões. Basta assistir à série Prison Breake e você terá noção de como é o sistema prisional dos Estados Unidos por conta da visita íntima ser proibida.

A visita íntima é um direito do preso. Está na lei de Execução Penal. É uma garantia de que o preso fica mais calmo, porque ele está recebendo a visita da sua companheira, da sua esposa, que o deixa mais calmo. Aí alguém vai falar que a esposa entra com uma arma. Só que isso não é problema da visita íntima, mas do sistema de vistoria.

Quais são as principais leis dos detentos?

Não olhar para a mulher do outro. Se a mulher de um preso passar, todos têm que abaixar o rosto. Isso é uma lei deles. Mesma coisa é que eles não aceitam pedófilo, estuprador. Aceitam o roubo, o furto, a corrupção. Mas acham perverso o homem cometer o estupro.

Qual é o seu olhar diante de tudo o que você já viu e administrou?

Continuo acreditando no ser humano.

FIZERAM UMA LEI CONTRA AS DROGAS EM QUE O POLICIAL PRENDE O SUJEITO NÃO POR SER USUÁRIO. ELE JÁ ENTRE NO PRESÍDIO COMO TRAFICANTE.

A superlotação dos presídios também é decorrência da Lei das Drogas. Como avalia essa legislação?

Fizeram uma lei contra as drogas em que o policial prende o sujeito não por ser usuário. Ele já entra no presídio como traficante. E muitos que entrevistei me disseram que não eram traficantes, mas que moravam do lado das bocas de fumo das favelas e foram presos injustamente. E muitos estão presos desta forma.

A gente sabe que tem dentro da Polícia Civil e Militar, umas gratificações de rendimento, de quem prende mais. Então, se a delegacia X prende 15, a delegacia Y quer prender 20. E aí, se um homem é morador do lado da boca de fumo, a polícia pega. Porque é muito fácil colocar trouxinhas de maconha na bolsa dele e acusar como traficante. Então, essa lei, em vez de trabalhar a favor da sociedade, veio contribuir para o aumento prisional.

O outro ponto do problema prisional do Rio de Janeiro foi o fim das Polinters, que ficavam com os presos antes de serem julgados. Hoje, o preso é jogado direto no sistema prisional, sem que seja aumentado o efetivo de guarda, de assistente social, de psicólogo. E assim explodiu o sistema prisional.

A Delegacia Legal não auxiliou neste sentido?

Após o fim da Polinter, foi criada a Delegacia Legal. O problema das delegacias legais é que não possuem carceragem. Então, se alguém for preso hoje, vai dar entrada na Delegacia Legal, vai ter seu boletim de ocorrência e vai entrar no sistema prisional. E lá, que está superlotado, vai aguardar julgamento, que vai acontecer em um ano, no mínimo.
Então, se algum governador quer fazer alguma coisa, ele tem que arrumar essa casa primeiro. Senão, vai continuar dessa forma, infelizmente.

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