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Igreja acobertar agressão à mulher é infidelidade a Deus e crime de omissão

A violência doméstica ainda é tratada como tabu em muitas igrejas

Marisa Lobo - 22/03/2022 13h46

Precisamos abordar um tema que ainda tem sido tratado como um tabu em muitas igrejas, infelizmente. É sobre a violência doméstica praticada por homens que, muitas vezes, exercem cargos de liderança em suas denominações. Ou que simplesmente são membros ativos, partilhando a comunhão junto aos demais irmãos em Cristo sem qualquer restrição.

Tentarei ser objetiva, pois apesar de polêmico, a minha posição quanto a esse assunto é muito clara. Inicialmente, não deveríamos tratar essa questão como um tabu. O simples fato de ainda ser um tema capaz de causar desconforto no meio da Igreja significa que há muita coisa errada.

O desconforto é sinal de que há cumplicidade e erro na lida com o problema. Acredito que isso ainda ocorra porque muitos não sabem como encarar algo tão grave em nível familiar. No entanto, é por isso que a Igreja, especialmente os seus líderes, deve ter a responsabilidade de orientar e assumir uma posição clara diante do problema.

NÃO É PAUTA FEMINISTA
Precisamos deixar claro que condenar a violência doméstica não tem nada a ver com feminismo. Confesso que me sinto até envergonhada em ter que dizer isso, pois se trata de algo óbvio e até intuitivo.

Defender a mulher que é vítima de agressão por parte do marido, seja ele quem for, é defender a obediência ao próprio evangelho de Cristo, no qual a figura feminina dentro do casamento é retratada como a Igreja pela qual o homem deve dar a vida por sua proteção, e não para lhe humilhar e agredir.

Essa concepção foi apresentada pelo apóstolo Paulo de forma muito clara em Efésios 5, dos versos 24 ao 29, passagens que faço questão de listar a seguir para que o leitor não tenha dúvida quanto ao fundamento teológico deste artigo:

“Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela; para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra; para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível”.

“Assim devem os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja”.

Por incrível que pareça, alguns homens que cometem o crime da agressão, gostam de citar esses mesmos versículos para tentar justificar suas atitudes, alegando que pela falta de “submissão” da mulher aos seus comandos, a reação agressiva se torna consequência. Um absurdo!

Entendam uma coisa: submissão não é subserviência! Os versos que orientam a submissão da mulher ao seu marido tratam de uma atitude voluntária como resultado de uma relação recíproca baseada no amor e no respeito de um para com o outro.

A subserviência, por outro lado, é o mesmo que servidão/escravidão, o que significa ser forçada a fazer algo, mesmo contra o seu entendimento e a sua liberdade. Não é isso o que a Bíblia ensina. É por isso que Paulo apresenta a relação homem-mulher no casamento como semelhante a de Cristo com a Igreja.

Jesus obrigou a Igreja a segui-lo? Jesus forçou a conversão dos apóstolos, ou simplesmente os convidou? Jesus tratou com amor ou com autoritarismo os seus discípulos, obrigando-os a fazer o que Ele queria, mesmo contra a vontade deles?

A Bíblia é clara e não vemos, em suas passagens, Jesus tratando os seus discípulos como subservientes. Cristo foi seguido voluntariamente, de modo que a Igreja se submeteu ao Senhor pelo que Ele é, após ter demonstrado um amor tão grande que foi capaz de morrer por ela.

Esse é o tipo de marido que a Bíblia modela para nós, mulheres. Quando uma mulher é tratada dessa forma, portanto, a submissão é o resultado natural de um amor baseado no exemplo e não no autoritarismo.

DEUS TAMBÉM CURA E RESTAURA
Não posso ser negligente quanto aos diferentes contextos familiares. Se por um lado há muita omissão quanto ao crime da violência doméstica no seio da Igreja, por outro, também há pessoas que enxergam o divórcio como solução para tudo, o que não é bem assim.

Uma mulher agredida pelo marido deve denunciar essa agressão; mas, não significa que deverá anunciar o divórcio como fórmula mágica para a resolução dos seus problemas conjugais, muito embora possa.

Biblicamente, como vimos na passagem de Efésios anteriormente, o homem que não cuida da esposa como Cristo cuida da Igreja está abrindo mão do próprio casamento, o que dá margem legal para a separação.

Em outras palavras, entendo que a mulher agredida, mesmo que pela primeira vez, já possui a concessão bíblica para o divórcio, bem como o dever de fazer a denúncia do marido às autoridades competentes (Delegacia da Mulher).

No entanto, se partirmos para o divórcio como primeira atitude, não estaríamos ignorando o fato de que Deus pode restaurar a vida do esposo que caiu em desgraça? Se acreditamos na restauração de assassinos confessos e abrimos as portas de nossas igrejas para eles, não podemos acreditar na mudança de um homem que agrediu a esposa?

E, se ignorarmos essa possiblidade, não estaríamos deixando de exercer a misericórdia tão bem ensinada por Jesus? É por isso que a liderança cristã precisa estar muito bem capacitada para discernir cada situação em seu devido contexto, considerando os desejos da mulher agredida, que é a vítima, em primeiro lugar.

Ou seja, a Igreja também não pode cair no erro de desacreditar na restauração familiar, mesmo nessas circunstâncias. Claro, desde que exista condições para isso, sendo a principal o arrependimento e a mudança de comportamento por parte do agressor, bem como o desejo da vítima de querer perdoar e tentar manter a relação.

Em todo caso, é importante frisar que independentemente das decisões a serem tomadas, a agressão deve ser denunciada. Mesmo que haja perdão e uma tentativa de restauração, o crime não pode ser acobertado, mas sim exposto ao conhecimento da liderança e das autoridades, a fim de que o agressor tenha plena consciência de que a violência não será mais tolerada.

Aliás, o homem que admite o seu erro e deseja mudar, não deve apresentar qualquer oposição em relação ao pedido de ajuda e denúncia. Pelo contrário, ele faz disso uma oportunidade de demonstrar arrependimento e disposição de mudança.

CUMPLICIDADE NÃO É ATO DE PERDÃO
Feitas essas as considerações, em que tratamos sobre a possiblidade de perdão e restauração familiar, é de suma importância que as medidas extremas também sejam apontadas, o que significa o divórcio, a denúncia do agressor e a sua devida punição.

Ao longo dos anos, já vi muitos casos absurdos nos quais a liderança da igreja confunde o exercício do perdão com a cumplicidade. São situações em que o homem agressor se diz arrependido, mas volta a cometer o crime, mantendo o ciclo de violência contra a esposa.

A mulher que é vítima dessa situação, costuma perder a capacidade de reagir, pois se vê ameaçada e intimidada pelo próprio marido, sendo comum procurar esconder a violência da qual é vítima. Em alguns casos, a própria comunidade religiosa exerce uma pressão “moral” sobre ela, no sentido de querer continuar tentando manter a relação; o que está errado.

Nessas circunstâncias, a liderança religiosa e a sua igreja cometem o crime de omissão, de acordo com o art. 13, § 2º, do Código Penal Brasileiro, pois deixa de reagir, oferecendo socorro e prestando denúncia às autoridades policias.

Esse é o tipo de cenário no qual o perdão e as “desculpas” do agressor não devem mais ser usados como licença para a continuidade da relação. O criminoso deve ser denunciado, punido, e a sua mulher acolhida, protegida e cuidada pela igreja em todos os aspectos, incluindo no socioeconômico, se necessário.

CONSIDERAÇÕES
Finalmente, termino dizendo que sei o quão complexo é lidar com a violência doméstica, especialmente nos contextos em que há muita dependência socioeconômica e também a influência de figuras de autoridade, como lideranças religiosas.

A nossa perspectiva moral, bíblica, em que a busca pela preservação familiar e o exercício do perdão contrastam em certa medida com os valores do mundo, também dificultam esse trabalho de discernimento. Mas esta jamais deve ser sinônimo de omissão diante da violência, mas sim a exigência de maior preparo e sabedoria da nossa parte, como Igreja.

Também sei que parte dessa complexidade no seio da Igreja é por falta de abordagem ao assunto. Precisamos treinar homens e mulheres para identificar e lidar com casos dessa natureza, de forma correta, pois isso também é demonstração de amor ao próximo e zelo para com o evangelho de Jesus.

Do contrário, a Igreja que negligencia esse problema se torna infiel para com Deus, pois deixa de ensinar e defender o ideal bíblico de casamento para a sua própria congregação, o que é definitivamente inaceitável.

Marisa Lobo possui graduação em Psicologia, é pós-graduada em Filosofia de Direitos Humanos e em Saúde Mental e tem habilitação para Magistério Superior.

* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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