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Quando a própria lei se torna ilegal

A verdade é que grande parte da lei hoje serve aos interesses de poderosos, muitas vezes improdutivos, e indevidamente cada vez mais ricos

Luiz Sayão - 04/09/2018 10h27

“Quando os fundamentos estão sendo destruídos, que pode fazer o justo?” (Salmo 11:3).

As palavras deste salmo davídico revelam uma preocupação das mais relevantes para o nosso contexto contemporâneo e reflete muito da realidade presente no Brasil e em vários países do mundo. O salmo descreve uma situação de profunda decadência moral e social no antigo Israel. Talvez reflita o início da trajetória de Davi, quando Israel estava em crise, na época de Saul. Outra possibilidade seria outro momento difícil posterior, na época de um rei dravídico. Não se sabe com certeza o contexto histórico, mas isso pouco altera a mensagem do texto.

O poema bíblico surpreende, pois é ao mesmo tempo um salmo de confiança e de lamento. Mistura perfeito e plenamente pertinente. A pergunta sofrida do salmista sobre a injustiça na sociedade (versículo 3) contrasta com a esperança que surge no versículo 4, que afirma que o justo, o grande Deus, o SENHOR, “está no seu santo templo”. Mesmo com sua esperança na futura intervenção divina, o salmista mostra-se consternado e desesperado com o triunfo dos ímpios que ameaçam o justo abertamente.

Há até mesmo um sentimento de incapacidade diante da maldade dominante. O sentimento beira o ceticismo no versículo 3: “que pode fazer o justo?”. Alguns estudiosos entendem que o texto possa ser traduzido por “que justo tem condições de fazer?”. Afinal, como lidar com uma situação dessas?

A mensagem do salmo 11 revela um contexto que se assemelha à nossa realidade. A maioria da nossa religiosidade predominante tem historicamente desenvolvido uma ética meramente individualista voltada para questões irrelevantes e particulares. O grande problema é que enquanto vivemos neste mundo de alienação, a sociedade abandonada à gerência do secularismo infértil e arruinador, torna-se refém do mal.

Chegando à nossa realidade, como deve um discípulo de Jesus seguir o bem e confrontar o mal? Um caminho aparentemente inequívoco é a boa preocupação que temos em obedecer à lei. Um cristão genuíno é aquele que obedece ao Estado, que exerce o seu direito, dado por Deus (Romanos 13:4). Por isso, os cristãos sérios e sinceros pagam seus impostos, procuram obedecer às leis e agem como bons cidadãos. Mas, será que sempre deve ser assim?

O mesmo texto bíblico que elogia a obediência ao governo estabelece bases para os limites dessa obediência civil. Em Atos 5:29, proibidos de anunciar o evangelho, Pedro e os apóstolos confrontam as autoridades e afirmam: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!”. Há momentos e ocasiões em que a lei pode estar do lado do mal. Diante disso, precisamos ampliar o foco de nossa análise ética para entender que “quando os fundamentos estão sendo destruídos” as coisas precisam ser encaradas de modo diferente.

Infelizmente, muitas leis têm sido tão mal utilizadas, que, em muitos casos, viraram armas de opressão e de destruição. É importante ressaltar que a maioria das atrocidades humanas aconteceu e acontece “dentro da lei”. É com base “na lei” que milhares de cristãos, de judeus e de outras minorias têm sido perseguidos, presos e assassinados em países islâmicos radicais, fazendo eco aos outros milhares que morreram sob as ditaduras de inspiração marxista. Foi com base “na lei” que Hitler perseguiu, prendeu e matou milhares e milhares de judeus, cristãos e ciganos.

“A lei” tem dado direito de matar a milhões de homicidas do mundo que tiram a vida de bebês indefesos no ventre da mãe. Em alguns lugares isso já é um direito, um “sinal de civilidade” e ainda é pago pelo estado. Com base na sua “lei” diversos governos dos EUA têm desrespeitado leis internacionais e mantêm sua política imperialista no mundo. Com base na “lei”, os países muçulmanos, em geral, tratam as mulheres como seres de “segunda classe”. Com base na “lei”, os políticos brasileiros votam seus próprios salários, privilégios e aposentadorias e um salário “muito abaixo de mínimo” para o povo.

A grande verdade é que grande parte da lei hoje serve aos interesses de poderosos, muitas vezes improdutivos, e indevidamente cada vez mais ricos. Houve uma concentração de poder e de riqueza descomunal nas últimas décadas no Brasil e em todo o mundo. Grande parte da humanidade agoniza para sobreviver, enquanto que os mais ricos investem “legalmente” em produtos para cachorros e gatos, em “iates” e em “diversão”. A verdade é que até a escravidão já se tornou comum hoje em muitos lugares. Nunca se viu tanta concentração de poder e de riqueza nas últimas
décadas no Brasil e em todo o mundo. A verdade é que a escravidão é um fato ainda hoje…

A verdade é que o mundo está sufocando numa luta contra as três maiores fontes de riqueza perniciosas da atualidade: ‘tráfico de armas’, ‘tráfico de gente ligado à prostituição’ e ‘tráfico de drogas’. O perigo muito real é que por força do poder político e do dinheiro muitas dessas coisas poderão ter o consentimento e a legitimidade da “lei”. Leis que “diminuem a liberdade religiosa”, que “permitem uso do dinheiro público para fins ideológicos”, que “protegem gente corrupta”, que “minoram o crime da pedofilia”, que financiam “o aborto”, “a eutanásia”, “a guerra justa”, “a prática indireta da escravidão” e etc. Em muitos lugares no Brasil e no mundo a lei está virando ilegal! Pelo menos diante de Deus.

Foi por esta razão que o escritor cristão francês, Jacques Ellul, chegou a propor o que ele chamou de uma “anarquia cristã”. Sua ideia é que os cristãos não poderiam confiar jamais em sistema político nenhum, mas teriam sempre de protestar contra o mal, como verdadeiros exemplares do legítimo “sal da terra”. Talvez Ellul tenha exagerado em sua proposta. Todavia, está na hora de alguma coisa ser feita, pois a maldade toma conta do mundo. Pelo menos, uma coisa o justo não pode fazer: “Agir como se nada estivesse acontecendo”. Precisamos de muita oração, muita prática da justiça em nossa vida pessoal e de um protesto coerente e adequado (que não seja politicamente vendido ou orientado) contra tanta impiedade.

Misericórdia, ó Deus, livra-nos da alienação.

Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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