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Posso todas as coisas… Será?

Esse é um dos textos mais mal compreendidos das Escrituras nos dias de hoje

Luiz Sayão - 07/08/2017 11h23

Posso todas as coisas / Foto: Divulgação

O meio religioso efervescente da realidade brasileira tem suas peculiaridades e um comportamento curioso, nem sempre muito saudável. No trânsito frenético e intenso das grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, não é difícil notar em veículos diversos adesivos com textos bíblicos ou frases religiosas. Talvez, um dos mais comuns seja o slogan tirado de Filipenses 4.13: “Posso todas as coisas (ou tudo posso) naquele que me fortalece”.

A pergunta surge espontaneamente: “Por que tanta gente divulga essa mensagem bíblica? O que estão querendo anunciar? Qual é o significado correto do texto? Afinal, por que se tornou tão popular?”.

Infelizmente, esse é um dos textos mais mal compreendidos das Escrituras nos dias de hoje. Por incrível que pareça, nessas linhas veremos que as palavras do apóstolo Paulo são entendidas exatamente no sentido contrário ao pretendido pelo autor. O fato é que a grande maioria dos testemunhos e mensagens que citam o texto de Filipenses nos meios de comunicação mais comuns está atrelada à teologia popular triunfalista de nossos dias. Ainda que de modo indevido, acredita-se que “posso todas as coisas naquele que me fortalece” significa “vencerei todos os obstáculos que estão à minha frente” ou “posso alcançar tudo o que quiser”, ou até mesmo: “comigo ninguém pode”. Assim, muitos pensam que podem comprar aquilo que não têm como pagar; outros acham que podem fazer aquilo para o qual não têm nenhum dom ou preparo; sem falar dos absurdos ainda maiores (posso assumir dívidas, desejar a queda do meu inimigo etc.) por gente que nem faz ideia do que Deus quer nos ensinar neste versículo.

Falando de interpretação bíblica, o assunto deve ser visto com seriedade. Todo leitor da Bíblia tem a responsabilidade de buscar o sentido fundamentado e correto do texto sagrado. E não há dúvida de que o sentido correto é aquele que o autor original quis transmitir quando escreveu o texto. A ideia de que se pode “descobrir” algo especial, “misticamente escondido” no texto, é incorreta e deve ser abandonada. O que Paulo tinha em mente quando registrou tais palavras? Qual foi sua intenção ao escrever para os irmãos filipenses? Precisamos descobrir…

A leitura detalhada do texto grego não lança tanta luz à interpretação neste caso específico. A tradução quase que literal da maioria das versões em português expressa com suficiência o conteúdo do verso no texto original. Vale mencionar que “fortalece” vem de “dynamis”, que significa poder, força, o que intensifica o fortalecimento dado por Cristo no versículo. O problema aqui não está na tradução! A questão determinante é ler o texto fora de contexto.

Antes de tudo, é necessário observar que Filipenses é uma das epístolas paulinas da prisão. Juntamente com Efésios, Colossenses e Filemom, trata-se de uma carta escrita quando Paulo estava preso por causa do Evangelho. Os textos dos versos 1.7, 13, 14 e 17 deixam muito claro o contexto de encarceramento do apóstolo. Todavia, não se sabe com certeza onde Paulo estava aprisionado. Tradicionalmente, os intérpretes clássicos sugeriram que Paulo estava preso em Roma (At. 28.16,30), por volta de 60-61 AD, principalmente por causa de 1.13, que cita “a guarda do palácio”, isto é, o Pretório. Se essa conclusão estiver correta, a carta estaria no mesmo contexto das demais “cartas da prisão”. Outros intérpretes, porém, sugeriram que Paulo poderia estar preso em Éfeso (1Co. 15.32); há outros ainda que entendem que a prisão em Cesareia (57-59 AD) seria o cenário ideal para a elaboração da epístola aos Filipenses. Independentemente das minúcias cronológicas, o importante é que Paulo estava “em cadeias”.

Surpreendentemente, apesar do contexto, Filipenses é uma das epístolas mais pacíficas do Novo Testamento. Paulo quase não apresenta nenhuma censura à igreja nova da Macedônia. Além disso, um dos temas de encorajamento que marca a epístola é a “alegria”. O verbo “alegrar-se” (chairo) aparece em 1.18, 2.17, 18, 28, 3.1, 4.4 e 4.10; “regozijar” (synkairo) está em 2.17 e 18. O imperativo plural é contundente, aparecendo em 2.18 e 4.4, no famoso texto que diz: “Alegrem-se no Senhor. Novamente direi: Alegrem-se!”. É impressionante ver um preso exortando os demais à alegria.

É nesse contexto de alegria, particularmente por uma oferta recebida dos filipenses em favor de Paulo, que o texto de 4.13 está inserido. A perícope no versículo 10 tem como desfecho o verso 13. Não será tão difícil entender o versículo final se prestarmos atenção ao texto imediatamente anterior. Os versículos 11 e 12 dizem: “Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente com toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade”. Depois de afirmar isso, Paulo diz que “tudo pode em Cristo”.

Afinal, o que Paulo pode (no sentido de ser capaz de suportar)? É muito simples: Pode passar necessidade, pode passar fome, pode ser preso. Isto quer dizer que Paulo pode enfrentar qualquer situação difícil, pois Cristo lhe dá força suficiente para suportar as agruras do ministério. Ele pode “todas as coisas”. Todavia, deve ficar claro que Paulo também diz que pode estar bem alimentado, pode ter muito e pode ter fartura. No entanto, “pode” aqui não significa “tenho capacidade para conseguir”, muito menos quer dizer “tenho direito a isso”. Ao contrário, “poder” aqui significa que a fartura também não permite que Paulo sirva menos a Deus. A essência de tudo é “aprendi o segredo de viver contente com toda e qualquer situação”. Se tenho fartura, louvado seja Deus; que ela não me impeça de servir ao Senhor. Se enfrento problemas, louvado seja Deus; que eles não me desanimem no ministério cristão.

Assim, não “posso todas as coisas”, como muitos sugerem indevidamente, mas, com a graça de Deus, posso enfrentar toda e qualquer situação.

É muito importante ler a Palavra de Deus e entendê-la corretamente, do contrário nosso entendimento e prática serão extremamente prejudicados! É hora de voltar a estudar a Bíblia com profundidade e responsabilidade.


Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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