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O livre-arbítrio e a responsabilidade humana

Falar sobre livre-arbítrio não é fácil. As polarizações de perfil filosófico-teológico têm causado polêmicas e controvérsias ligadas ao tema. Todavia, a questão permanece

Luiz Sayão - 14/08/2018 10h32

Nos últimos tempos, falar sobre livre-arbítrio tornou-se difícil. As polarizações de perfil filosófico-teológico têm causado polêmicas e controvérsias ligadas ao tema. Todavia, a questão permanece como tema significativo na história do pensamento bíblico e cristão.

Por incrível que pareça, nem sempre a expressão livre-arbítrio é entendida da mesma forma pelos que discutem o assunto. De modo geral, fala-se em livre-arbítrio como “a condição de fazer escolhas de modo livre, sem interferência de qualquer condicionamento ou causa determinante”. Isso ainda é bastante vago. Do que estamos falando? Não existe nenhum fator que limita as nossas escolhas? Isso é muito improvável. Por outro lado, negar o “livre-arbítrio” significa que não temos responsabilidade moral em nossas decisões pelo fato de as nossas escolhas não serem “escolhas
reais”. Esse determinismo também é improvável.

Diante da discussão, é importante destacar que a questão já está presente logo no início das Escrituras. Quando Deus deixa Adão e Eva no Jardim do Éden, eles são colocados diante da escolha de obedecer ou não à ordem divina (a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal – conhecimento absoluto/ser como Deus). A desobediência tem causas terríveis. O pecado causa a morte. O uso da liberdade para o bem ou o mal surge com destaque. A tradição judaica consagrou esse conflito entre a obediência e desobediência como a luta entre o Yetser Hatov e o Yetser Hara‘.

A discussão, portanto, está diretamente ligado ao problema do mal. Por que o pecado e o sofrimento estão presentes no universo do Deus bondoso e todo-poderoso?

Muitos estudiosos do tema explicam que diante da realidade do mal, Deus permite o mal e o utiliza para fins bons. Deus permite o mal para produzir um bem maior. Para explicar a origem do mal,
afirma-se que o mal sempre seria uma possibilidade, visto que Deus criou seres dotados de vontade livre (livre-arbítrio). E para que fossem de fato livres, e não máquinas, esses seres sempre teriam a possibilidade de optar por agir contra a vontade de Deus, e isso então daria origem ao mal (pecado). Portanto, a única saída para a impossibilidade plena do mal seria a inexistência de seres pessoais livres, o que nos daria um universo mecanicista, composto de seres impessoais, destituídos de arbítrio. Portanto, a questão do arbítrio humano está diretamente ligada à imagem
de Deus (imago dei).

Os defensores desse posicionamento ainda argumentam que Deus apenas permite o mal – o que não é a mesma coisa que ser autor direto do mal – por razões e finalidades boas que não compreendemos plenamente agora. Evidentemente, a força desses argumentos depende de suas pressuposições.

O argumento teísta clássico afirma que o mal pode ter início no bem, embora isto seja incidental e nunca essencial. Não há derivação essencial do bem para o mal. Isso é compreensível, pois segundo o teísmo clássico (e o pensamento bíblico) o mal não existe enquanto substância, conforme mostra o clássico argumento de Agostinho. Nesse sentido, o mal não possui existência plena. É como a ferrugem que atinge o ferro. Não existe um ferro totalmente enferrujado, pois esse deixaria de existir. Assim como a ferrugem existe em função do ferro como elemento parasita e destruidor, também o mal só existe em função do bem.

A ideia fundamental desse tipo de teodiceia é que o mal tem origem no mau uso do arbítrio das criaturas de Deus. Algumas dessas criaturas optaram pelo mal moral (na escolha da árvore do Éden). Esse exercício da liberdade resultou direta ou indiretamente em todos os males e sofrimentos que acometem o mundo de Deus.

Recentemente, filósofos contemporâneos questionaram a lógica desse posicionamento. Segundo eles, Deus não estava obrigado necessariamente a criar seres com capacidade de escolher o mal. Alguns estudiosos da questão como Antony Flew e J. L. Mackie negaram a validade do argumento tradicional, afirmando que Deus poderia ter criado seres que escolhessem sempre o bem. Outros estudiosos, porém, como Nelson Pike e Alvin Plantinga rebatem essa ideia afirmando que ela nega o sentido comum da palavra liberdade.

Talvez a maior dificuldade da discussão é que nem sempre se trata suficientemente da distinção entre o mal físico (catástrofes naturais) e o mal moral (pecado). É fato que muitos males têm origem no exercício da liberdade humana, mas, pergunta-se se um terremoto ou um furacão poderiam ter a mesma explicação? A resposta normalmente dada é que ou estes males têm sua causa primeira em um espírito demoníaco ou que eles têm alguma relação com o pecado de alguém ou dos antepassados, o que pode chegar até o pecado original de Adão. O raciocínio básico é essencialmente retributivo.

Portanto, a discussão sobre o livre-arbítrio parece ficar mais clara quando se entende que o ser humano, como imagem de Deus, é capaz de escolhas reais e responsabilizáveis. Não se pode aceitar a ideia determinista de que somos apenas máquinas, robôs, que têm escolhas plenamente definidas por aspectos biológicos, ambientais, psicológicos e sociológicos. Esse perfil determinista é desafiado pelo pensamento bíblico. Mas, isso não significa que nossa liberdade é absoluta. Não temos livre-arbítrio no sentido em que podemos fazer o que desejamos. Nossas escolhas são limitadas pela nossa condição de criatura. Nossa liberdade não é total, ainda que seja real e moralmente responsável.

Todavia, a questão não se restringe à teologia da criação. O texto bíblico é claro em nos afirmar que depois da entrada do pecado do mundo, a neutralidade humana não existe. O homem é mau. É pecador por natureza. A discussão agora envolve hamartiologia e o mal moral. Nossa liberdade foi afetada. Nossa depravação interfere em nossas escolhas, porque somos pecadores desde que nascemos. Apesar disso, estar claro nas Escrituras e na teologia evangélica, os detalhes ainda estão em aberto.

Será que nossa depravação tira-nos nossa humanidade? A imagem de Deus foi excluída? Não há nada de bom na experiência humana fora da experiência cristã?

Não é bem o caso. Poderíamos aqui cair em outro tipo de determinismo. A depravação humana não significa que somos infinitamente perversos e que todos os nossos atos são monstruosos. Não é o caso, como se vê na vida do gentio e pagão Cornélio (Atos 10) antes de ser convertido. Essa depravação significa que todos os nossos atos são maculados, egoístas, autocentrados, imperfeitos e incompletos. Não damos a Deus a glória que só ele merece.

Portanto, nossas escolhas estão prejudicadas, e a situação é muito pior. Não somos “livres” no sentido pleno, pois temos limitações naturais por causa do pecado original. Todavia, não podemos negar nossa liberdade, no sentido em que temos consciência moral, podemos roubar ou não roubar, e somos responsáveis por nossas escolhas. É preciso ter equilíbrio para entender os dois lados que envolvem a nossa liberdade ou, se assim preferirmos, o nosso “livre-arbítrio”.

Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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