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Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender!

A velha e tradicional canção traz à tona o desafio que a fé cristã tem em sua jornada histórica

Luiz Sayão - 08/01/2019 10h04


Quase todo mundo conhece a famosa canção popular de final de ano na realidade brasileira. No desejo de alcançar prosperidade e recursos materiais, repete-se o refrão pra lá de popular: “Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.

A velha e tradicional canção traz à tona o desafio que a fé cristã tem em sua jornada histórica. A fé bíblica arquiteta-se numa tensão dialética entre a contextualização e a pureza doutrinária. Embora o cristianismo primitivo pudesse se ajustar a qualquer contexto com facilidade, sua doutrina fugia do sincretismo que ameaçava sua identidade. Esta tensão é um desafio permanente na história da Igreja e, devido ao crescimento extraordinário da fé nas últimas décadas, torna-se um desafio contemporâneo expoente.

O triunfo do capitalismo e do neoliberalismo como filosofia econômica, aliado à perspectiva pós-moderna e ao misticismo histórico do povo brasileiro, construiu um cenário favorecedor para uma teologia popular, marcada pela ênfase na prosperidade material. A nova onda triunfalista desdobrou-se na chamada teologia da prosperidade, que enfatiza que estar bem com Deus é ter “muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Numa inversão da proposta da teologia da libertação, seus propagadores afirmam que Deus está do lado de quem tem recursos financeiros. A bênção divina não é apenas a salvação, mas também e, principalmente, nas riquezas terrestres aqui e agora.

Nesse novo cenário, a falta de recursos materiais ou de saúde perfeita é interpretada como falta de fé ou como obra do mal. Não ser próspero é, na prática, um pecado, um desvio da fé. Há uma sincronia de desejos e alvos com o marketing capitalista atual: a fantasia dos produtos de grife, que representam poder e status na sociedade atual, é alcançada com o “poder de Deus”.

O problema desse enfoque é hermenêutico. A proposta de interpretação de certos textos bíblicos é equivocada. Com base numa leitura incorreta de Gálatas 3.14, sugere-se que os cristãos devem herdar a bênção que Deus concedeu a Abraão. A bênção de Abraão que chegaria aos gentios! E que bênção é essa? A resposta é: muitas riquezas. O texto de Gálatas é incorretamente relacionado com Gênesis 13.1-2! Assim, o legado de Abraão já não é mais a fé, mas sim “gado, prata e ouro”. Com raciocínio semelhante, é sugerido que Isaías 53.4,5 afirma que Cristo levou nossas enfermidades a ponto de não mais adoecermos. Ficar doente é pecado ou falta de fé! É importante ressaltar que a nova ideia não afirma apenas que Cristo cura e dá bênçãos materiais aos seus! A ideia é que agora nós temos direito a essas coisas, e que Deus está obrigado a nos concedê-las, a ponto de que elas se tornaram um sinal de espiritualidade genuína. Portanto, cristão abençoado é cristão rico e fisicamente perfeito e sadio!

Uma leitura simples de alguns textos bíblicos mostrará como isso não subsiste. Em primeiro lugar, basta ver a história de Jó e dos profetas bíblicos para percebermos como tal sugestão hermenêutica não é realidade nem no Antigo Testamento. O Salmo 73, por exemplo, discute o problema da prosperidade dos ímpios, que estavam muito bem de vida na ocasião. Quando lemos o Novo Testamento, o quadro é ainda mais desafiador para essa frágil hermenêutica da prosperidade. Os apóstolos são presos e martirizados; João Batista, o precursor de Jesus, morre degolado; os crentes da Judeia recebem uma oferta da Macedônia por estarem passando por necessidades físicas. Será que eles não tinham fé? Estavam presos por terem pecado? É claro que não!

O fato é que a Bíblia toda nos ensina que Deus permite que enfrentemos situações difíceis para o nosso próprio bem. Nem sempre riqueza é “bênção”. É verdade que um bom cristão, profissionalmente competente, tende a prosperar na vida, mas isso não quer dizer que quem está com problemas financeiros está necessariamente em pecado ou longe de Deus. Muito menos podemos acreditar no contrário, ou seja, que todos os ricos estão espiritualmente bem. O importante é saber enfrentar toda e qualquer situação, como Paulo, que aprendeu a estar contente na fartura e na dificuldade (Fp 4.12-13).

Voltando à hermenêutica, como entender o texto de Isaías 53.4,5, citado em Mateus 8.17? Acaso não cremos no poder de Deus? Cristo levou ou não levou os nossos pecados? Por que então adoecemos? Como entender esse texto? Já mencionamos que os crentes do Novo Testamento ficavam doentes e muitas vezes não eram curados por Deus, como foi o caso de Timóteo com seus problemas de estômago (1Tm 5.23), de Trófimo (2Tm 4.20) e possivelmente do próprio Paulo (2Co 12.7-9). Além disso, sabemos que a obra da redenção efetuada por Cristo ainda não está plenamente concluída. Cristo, sem dúvida alguma, venceu a morte; mas, qual é o cristão que pode crer que jamais morrerá? Cristo venceu o pecado; mas todos sofremos tentações e lutamos contra a carne. De igual modo, Cristo levou nossas doenças e enfermidades, mas isso não significa que jamais adoeceremos. O pleno usufruir de todas as bênçãos da redenção só será possível depois da ressurreição, na vida eternal! Quem pretende antecipar essa realidade, está equivocado. Podemos pedir que Deus nos cure e nos restaure a saúde, pois ele é poderoso para fazê-lo, mas não podemos exigir isso!

Se esse raciocínio não subsiste a um exame teológico e hermenêutico, como devemos entender nossos problemas de enfermidade e de sofrimento? Precisamos reconhecer que alguns dos nossos problemas físicos têm razões genéticas. Há pessoas que têm tendência à depressão, a sofrer de diabetes, a adquirir muito peso, etc. Problemas genéticos não são causados pelo pecado nem pelo demônio! São de ordem natural. Como seres humanos frágeis, temos também problemas psicológicos. Muitos trazem traumas da infância e sofrem dificuldades pessoais que precisam ser tratadas com sabedoria, afeto e ajuda espiritual. O fato é que a causa imediata de muitos dos nossos problemas não é apenas sinal de nossa fragilidade humana. Por outro lado, também a verdade é que muito do nosso sofrimento procede de erros, pecados e atitudes impensadas do passado, cujos resultados colhemos agora. É muito fácil colocar a culpa no diabo, na maldição hereditária, na indisposição divina. Afirmar que não somos responsáveis por nossas atitudes é “fugir da raia”.

Quando Paulo trata dos problemas das igrejas do Novo Testamento, ele o faz apelando à capacidade de compreensão dos princípios de Deus e possibilidade de obedecer-lhes. Timóteo não tinha um demônio no estômago, Evódia e Síntique não tinham falta de fé. Pedro tornou-se repreensível por agir deliberadamente de modo incorreto e não por tomar posse da bênção. Não se pode reduzir tudo a problemas “espirituais”. Cada problema merece o seu tratamento certo. Se há possessão, oremos pela pessoa pedindo a libertação que vem de Deus. Se há doença, vamos tratá-la com os remédios acessíveis e orar por ela ao Senhor. Se há pecado, levemos o irmão à confissão e ao arrependimento. Se há problemas psicológicos, vamos tratá-lo com nossos conhecimentos, com a ajuda de um bom conselheiro cristão. E que Deus nos ajude a discernir a melhor maneira de agir nessas necessidades do seu povo.

Finalizando, gostaria apenas de enfatizar que nossa maior necessidade nesse contexto complexo e por vezes sem nexo é: “muito bom senso para o povo, e a Bíblia para estudar e entender”.

Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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