Leia também:
X Quando a própria lei se torna ilegal

Cura divina: O enfoque do Novo Testamento

Num mundo cheio de crises, doenças e insuficiências humanas, nada pode chamar mais atenção do que essa cura milagrosa realizada pelo poder divino

Luiz Sayão - 20/09/2018 10h42

Um dos temas mais empolgantes do Novo Testamento é com certeza a cura divina. Jesus surge como o Messias prometido fazendo grandes prodígios, comprovando sua origem divina. O testemunho dos evangelhos é claro: “Os cegos veem, os mancos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as boas novas são pregadas aos pobres; e feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa” (Mt 11:5,6). Num mundo cheio de crises, doenças e insuficiências humanas, nada pode chamar mais atenção do que essa cura milagrosa realizada pelo poder divino.

Hoje, milhares de igrejas cristãs em todo o mundo pregam a cura divina, proclamam o poder físico de Cristo e colecionam muitos testemunhos impressionantes de milagres que, surpreendentemente, parecem ter sido pouco investigados.

Todavia, a proclamação de cura sobrenatural não é exclusividade cristã. Muitos outros movimentos religiosos também proclamam a cura e fazem rituais com o propósito de sarar enfermidades. Muitas são as práticas mágicas, principalmente na realidade mística nacional, que são conhecidas e disseminadas em nossos dias.

Nos anos recentes muita gente tem ficado confusa com a questão da cura. A multiplicidade e a variedade dos movimentos evangélicos têm sido marcadas por um certo sincretismo. Muitos rituais realizados em ambientes evangélicos, do ponto de vista fenomenológico, se aproximam de rituais esotéricos e místicos não cristãos. A dúvida sobre a legitimidade bíblica e teológica do que está acontecendo é patente.

Questionados sobre suas práticas, os evangélicos mais místicos certamente responderiam que estão agindo com fundamentação bíblica. Seguramente, eles apontariam para certos textos bíblicos, aqui selecionados (observar o grifo):

“Deus fazia milagres extraordinários por meio de Paulo, de modo que até lenços e aventais que Paulo usava eram levados e colocados sobre os enfermos. Estes eram curados de suas doenças, e os espíritos malignos saíam deles” (Atos 19:11, 12).

“Em número cada vez maior, homens e mulheres criam no Senhor e lhes eram acrescentados, de modo que o povo também levava os doentes às ruas e os colocava em camas e macas, para que pelo menos a sombra de Pedro se projetasse sobre alguns, enquanto ele passava. Afluíam também multidões das cidades próximas a Jerusalém, trazendo seus doentes e os que eram atormentados por espíritos imundos; e todos eram curados” (Atos 5:14-16).

“Entre vocês há alguém que está doente? Que ele mande chamar os presbíteros da igreja, para que estes orem sobre ele e o unjam com óleo, em nome do Senhor. A oração feita com fé curará o doente; o Senhor o levantará. E se houver cometido pecados, ele será perdoado” (Tiago 5:14,15).

Os relatos dos lenços e aventais, da sombra de Pedro e da unção com óleo em Tiago têm sido considerados difíceis pelos teólogos mais tradicionais. Geralmente sugere-se que estes textos são apenas históricos e contextualmente dependentes, o que os tornaria não normativos para nós hoje. Todavia, tal avaliação não subsiste. Vários argumentos teológicos sobre temas como batismo, governo de igreja, contribuição, entre outros, são feitos com base em passagens históricas de Atos, por exemplo. Como entender a questão? Seria o cristianismo do Novo Testamento semelhante aos cultos místicos de hoje?

Antes de tudo, é preciso entender a lógica da teologia da cura no Novo Testamento. Um dos ingredientes fundamentais é a fé, ainda que curiosamente o Novo Testamento não apresente casos de curas de pessoas crentes (parece ser um sinal para os que não creem). Por diversas vezes Jesus afirma ao doente curado que a fé do indivíduo havia causado a cura (Marcos 5.34, e.g.).

No contexto hebraico, a fé não é apenas um sentimento ou impulso mental. Fé para um judeu envolvia a ação concreta. Por isso, o termo hebraico ‘emunâ pode ser traduzido tanto por fé e quanto por fidelidade. Assim, a cura era muitas vezes operada pela participação do doente que expressava a sua fé de modo concreto. Assim, surgem diversos pontos de contato entre o poder de Deus e a fé do que recebe a cura. Às vezes a fé é demonstrada pelo lenço, pela sombra, pelo óleo, pela saliva com barro nos olhos, pelo toque nas vestes, pelo levantar-se da maca, etc. O doente é conclamado a expressar a fé de maneira concreta.

Deve ser observado que em todos os casos os elementos concretos presentes na cura são sinais da fé que existe no doente ou em alguém que o auxilia. Nos textos acima citados, vemos Paulo não distribuiu (nem vendeu) lenços e aventais. Ao contrário, isso foi feito de modo espontâneo pelo povo. O mesmo pode ser observado no caso da sombra de Pedro. Até mesmo, no texto de Tiago, a unção com óleo não era praticada a partir dos líderes (presbíteros) da igreja. Ao contrário, a ação tinha início com o doente.

Observe a clareza da NVI aqui: “que ele mande chamar os presbíteros”. Ao convocar os presbíteros para a unção com óleo, estava demonstrada sua fé. A lógica é semelhante ao convite que se faz a uma pessoa para vir à frente afirmando que recebeu a Cristo. Vir à frente é uma demonstração de fé concreta. Isso é bastante diferente do enfoque místico não cristão.

O enfoque de cura não cristão é diferente. A ideia é que há objetos abençoados, como que cheios de energia espiritual. Assim, surge um certo fetichismo em torno do objeto, que passa a ser a fonte da cura. É um certo animismo. Com esse enfoque, faz sentido vender objetos sagrados que tenham poder de cura. Essa postura é muito distinta da visão neotestamentária. Uma boa maneira de observa o contraste é observar o texto de Marcos 5:24-34.

“… Uma grande multidão o seguia e o comprimia.
25 E estava ali certa mulher que havia doze anos vinha sofrendo de hemorragia.
26 Ela padecera muito sob o cuidado de vários médicos e gastara tudo o que tinha, mas, em vez de melhorar, piorava.
27 Quando ouviu falar de Jesus, chegou por trás dele, no meio da multidão, e tocou em seu manto,
28 porque pensava: ‘Se eu tão-somente tocar em seu manto, ficarei curada’.
29 Imediatamente cessou sua hemorragia e ela sentiu em seu corpo que estava livre do seu sofrimento.
30 No mesmo instante, Jesus percebeu que dele havia saído poder, virou-se para a multidão e perguntou: ‘Quem tocou em meu manto?’
31 Responderam os seus discípulos: ‘Vês a multidão aglomerada ao teu redor e ainda perguntas: Quem tocou em mim?’
32 Mas Jesus continuou olhando ao seu redor para ver quem tinha feito aquilo.
33 Então a mulher, sabendo o que lhe tinha acontecido, aproximou-se, prostrou-se aos seus pés e, tremendo de medo, contou-lhe toda a verdade.
34 Então ele lhe disse: ‘Filha, a sua fé a curou! Vá em paz e fique livre do seu sofrimento'”.

Nesse texto vemos que o manto de Jesus curou a mulher que sofria de hemorragia. Como nos casos do lenço, da sombra e do óleo, aqui temos também o manto. Todavia, o texto deixa claro que o manto não tem poder para curar. Não é um objeto sagrado. A prova é que todo mundo estava tocando no manto (verso 31) e nada de especial estava acontecendo. Não havia qualquer energia espiritual armazenada na roupa de Cristo. Todavia, ao expressar sua fé, a mulher cria que bastava tocar no manto que seria curada. E ela foi! Sua cura se deu não por causa do manto, mas por
causa de sua fé (verso 34), conforme as próprias palavras de Jesus.

Portanto, a igreja pode e deve orar pelos doentes com fé. Pode até mesmo ungir pessoas com óleo, ainda que isso não seja obrigatório. No entanto, suas práticas ligadas à cura divina não podem cair no animismo e no fetichismo pagão presentes na religiosidade popular. É necessário fugir desses equívocos sem deixar de crer no Deus pessoal e soberano que cura milagrosamente e que muitas vezes permite a dor prolongada. Às vezes, recebemos do Senhor uma cura milagrosa, às vezes Deus trabalha em nossa vida pelo sofrimento.

Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
Siga-nos nas nossas redes!
WhatsApp
Entre e receba as notícias do dia
Entrar no Canal
Telegram Entre e receba as notícias do dia Entrar no Grupo
O autor da mensagem, e não o Pleno.News, é o responsável pelo comentário.