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Povo religioso e Estado laico

O Estado laico não é hostil às religiões, ele proporciona o equilíbrio do exercício de fé entre os cidadãos

Gilberto Garcia - 28/12/2017 09h30

É vital a promoção de encontros e debates de conscientização, com as lideranças religiosas de todas as confissões de fé, numa proposição de respeito recíproco Foto: Pixabay

Nosso país já adotou o Estado confessional, que é o denominado Estado religioso, no período do Brasil Colônia, de 1500 a 1822, e no Brasil Império, de 1822 a 1891, quando a religião católica apostólica romana era oficial. Da mesma forma que atualmente, em lugares, como a Inglaterra a religião anglicana é oficial, e em países islâmicos, os quais consideram a opção crença até para efeitos de cargos no serviço público, ou em Estados onde se vive o ateísmo como ideologia oficial, sendo que em alguns desses países é permitido ou tolerado pelos governos, em maior ou menor grau, a prática da fé não ostensiva.

A separação Igreja-Estado, vigente em nosso sistema legal desde 1891, com a proclamação da República, e mantida pelas Constituições seguintes, inclusive, na Carta Magna de 1988, que fundamenta o Estado Laico, ou seja, o Estado sem religião oficial é uma das maiores conquistas da humanidade. Este tipo de construção jurídica, nosso país herdou da visão francesa, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, é exatamente o meio termo, entre o Estado ateu e o Estado confessional.

No Estado ateu impõe-se que a religião deve ser negada e perseguida pelos órgãos oficiais, numa visão unicamente materialista da vida, e com proibições para que os cidadãos possam expressar sua fé de forma pública, na perspectiva de que Deus é uma criação da mente humana e deve ser apagado das esferas sociais. Em alguns casos, grupos religiosos têm que ser cadastrado pelo Governo, sendo as pessoas incentivadas a buscar o relacionamento numa ótica tão somente humanística e existencial.

Já no Estado confessional há uma espécie de confusão entre os órgãos da administração pública, os poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário, que são as representações do Estado, e uma determinada religião, sendo esta a religião oficial, pelo que deve ser obrigatoriamente seguida por todos os cidadãos, sendo totalmente proibida, ou tolerada privativamente, a opção por qualquer manifestação espiritual que não seja aquela vertente de fé que é professada pelo Governo, para todos os efeitos legais.

Desta forma, o Estado laico, que não é laicista, ou seja, hostil às religiões, é o que proporciona o equilíbrio do exercício de fé entre os cidadãos. Seja porque não persegue ou proíbe qualquer manifestação religiosa, seja porque não adota oficialmente através de seus órgãos representativos qualquer opção espiritual em detrimento das demais. Ao contrário, com base na Constituição Federal de 1988 é dever do Estado proteger todas as confissões religiosas, inclusive cidadãos ateus e agnósticos.

Por isso, a conquista desse Estado laico, em nível constitucional, apesar de todas as suas imperfeições, especialmente na manutenção dos diversos feriados religiosos, e ainda, na tolerância de símbolos místicos em prédios e repartições públicas, é um marco legal que não deve ser flexibilizado de forma alguma; exatamente porque ele é a garantia jurídica da convivência pacífica entre os religiosos brasileiros de todos os matizes de fé, na perspectiva do respeito às diversificadas manifestações de crença.

A Constituição Federal de 1988 é peremptória ao assegurar a separação Igreja-Estado, em seu artigo 19,

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – Estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […], e, Ampla Liberdade Religiosa, no artigo 5º – Cláusula Pétrea, incisos VI, VII e VIII.

Por outro lado, o Judiciário Brasileiro tem sido instado a decidir questões religiosas às quais têm afetado os cidadãos, como no caso em que o CNJ decidiu que a utilização de símbolos religiosos em prédios públicos são a expressão histórica da cultura católica, não podendo ser entendidos como desrespeito aos demais cidadãos que professam uma fé diversa ou que não professam fé alguma. E, mais, o julgamento do Supremo Tribunal Federal que deliberou, por maioria apertada, ser constitucional o ensino religioso confessional em escolas públicas, inserido na concordata entre a Igreja Católica e Governo Brasileiro, o Acordo Brasil-Santa Sé.

É na esfera trabalhista, no denominado de assédio moral religioso no ambiente de trabalho, que temos tido decisões deveras importantes, tais como a que determinou aos Correios que readmitisse uma funcionária que se recusou a trabalhar aos sábados por sua opção de fé. Sendo que a mesma, não só cientificou a empresa das implicações de sua crença em seu horário de trabalho, como compensava sua jornada de trabalho em outros dias, comprovando sua ligação com os religiosos que guardam o sábado.

Já temos várias condenações trabalhistas de empresas que obrigam empregados a participarem de cultos. E, mesmo, da candidata que comprovou judicialmente que foi preterida numa seleção de emprego por ser uma ex-Testemunha de Jeová, sendo comprovado nos autos que a proprietária da empregadora não admitia que desviados de sua vertente religiosa trabalhassem em seu negócio, como a condenação dessa empresa por danos morais, alusivos à discriminação religiosa praticada num processo seletivo admissional; como, também o reconhecimento de vínculo trabalhista de ministros de confissão religiosa.

Citamos, ainda, alguns casos concretos que a Justiça tem decidido, como, de uma empregada doméstica que comprovou intolerância religiosa, pois havia sido demitida por justa causa por acusação de prática de bruxaria, sendo indenizada por danos morais, ou mesmo, a condenação da empresa que deduzia dízimos dos funcionários na folha de pagamento. E, especialmente, a proibição judicial de pregação religiosa nos trens cariocas motivados por ação judicial promovida pelo Ministério Público Estadual (RJ) alegando desrespeito à liberdade de crença dos passageiros nos trens da Supervia no Rio de Janeiro.

Numa outra vertente jurídica alguns fanáticos religiosos, que se autodenominam evangélicos, têm sido acusados pelos Líderes de Tradições de Matriz Afro de desrespeitar as oferendas e os locais de cultos da umbanda e do candomblé, entre outros, já existindo no Rio de Janeiro uma Delegacia de Polícia Especializada em Delitos Praticados sob Motivação Religiosa, e os que comprovadamente têm infringido as normas de respeito à boa convivência das crenças, seja individual ou coletivamente, têm sido enquadrados como praticantes de crimes de intolerância religiosa sofrendo as devidas penalizações legais.

Outrossim, chamou a atenção, fato ocorrido em Brasília, Distrito Federal, quando uma auditora do Ministério do Trabalho tentou impedir que crianças e adolescentes distribuíssem folhetos alusivos à fé evangélica durante a realização da Copa das Confederações, sob a falaciosa alegação de exploração de mão de obra infantil, o que causou espécie, pois o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é nítido ao preservar o direito à opção de fé das crianças e adolescentes, num verdadeiro caso de afronta à liberdade religiosa e ao abuso de autoridade. O agente público, segundo compartilhado pelos líderes evangélicos envolvidos, na Delegacia de Polícia recusou-se a registrar o Boletim de Ocorrência para instauração do Inquérito para apuração de responsabilidades.

Destaque-se que o Ministério Público Estadual (RJ) apresentou denúncia em face das manifestantes que, durante a “Marcha das Vadias”, cometeram o crime de vilipendio a objeto religioso previsto no Código Penal. Segundo investigações promovidas pela Polícia Civil, durante Jornada Mundial da Juventude, num dos cultos religiosos liderados pelo papa Francisco, na praia de Copacabana, as mesmas teriam tirados as roupas, quebrados imagens, sentado na cabeça de uma delas, e, ainda, praticado atos libidinosos públicos em seus corpos, utilizando símbolos da Igreja católica apostólica romana, o que caracteriza objetivamente a prática de ato ilícito, além do crime de intolerância religiosa à fé católica.

Por isso, é vital a promoção de encontros e debates de conscientização, especialmente contando com as lideranças religiosas de todas as confissões de fé, numa proposição de respeito recíproco, eis que o exercício da fé é atinente a todos os grupos religiosos, sejam: budistas, candomblecistas, católicos, espíritas, evangélicos, judeus, muçulmanos, orientais, umbandistas etc, inclusive, de ateus e agnósticos, pois o Povo é Religioso, mas o Estado é Laico tendo que ter o Equilíbrio da Laicidade Constitucional.

O Ordenamento Jurídico Nacional assegura e protege o Livre Exercício da Espiritualidade do Cidadão Brasileiro, mas necessita nas questões de Ordem Pública, especialmente, através dos poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário, em todos os seus níveis e esferas, resguardar a Vigência Legal da Separação Igreja-Estado. E, também, resguardar a Liberdade de Crença, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que requer exista mais que tolerância, haja respeito à fé, à luz da multiplicidade da diversidade religiosa, eis que, segundo o IBGE são mais de 200 grupos religiosos catalogados no país.

Tendo a premissa de que temos um povo religioso, que tem o direito natural e legal de professar sua fé nas mais diferentes vertentes de crença, eis que, nosso país, desde a Constituição Republicana de 1891, há mais de 120 anos, é um Estado que é laico, ou seja, sem religião oficial, que assegura a expressão de crença das pessoas, como inserido no Estatuto da Nação, direito humano fundamental à expressão de religiosidade, também reconhecido internacionalmente por todas as nações civilizadas, inclusive na Declaração de Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica, entre outros, validos no Brasil.

Gilberto Garcia é advogado, pós-graduado e mestre em Direito. Professor universitário e Presidente da Comissão Especial de Direito e Liberdade Religiosa do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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