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Mundo líquido, Igreja derretida

Luiz Sayão - 27/02/2018 10h15

Nos dias da cultura pós-iluminista, marcada pela desconstrução e pela falta de referências, é possível sentir a instabilidade gelatinosa de nossa sociedade. Geralmente, imagina-se que esse perfil é uma realidade no contexto fora da Igreja. No entanto, é hora de avaliar os efeitos dessa instabilidade no contexto evangélico.

Por incrível que pareça, a realidade do mundo eclesiástico não é muito diferente. Numa realidade social movida pelo deus-dinheiro/consumo, as relações humanas se tornaram prejudicadas e simplesmente descartáveis. O caos do nosso tempo percebe-se na própria família: abortos são comuns, filhos são rejeitados, abandonados e até vendidos, pais e mães entregam filhas para a prostituição, os divórcios se multiplicam, muitos casamentos vivem “de aparência”, o estilo de vida pansexual é enaltecido, a ideologia de gênero soa respeitável e o isolamento do indivíduo se torna paradigmático. A adesão familiar fragiliza-se sensivelmente. A boa e antiga ligação afetiva entre familiares é cada vez mais limitada. Esse triste ambiente geral sugere forte conexão com “os últimos dias”, descritos em 2 Timóteo 3:3 e 4, onde os homens são descritos como “desobedientes aos pais e sem amor pela família” (NVI). Confira também Romanos 1:30. Em Mateus 10:21 o texto fala da perseguição aos cristãos vinda dos próprios familiares que serão capazes de matar irmãos, filhos e pais. Veremos isso em nossos dias?
Estamos experimentando a individuação extremada do ser humano, a fragmentação e a atomização da sociedade. Será que o sonhado humanismo acabou desumanizando o mundo?

Certamente a maioria dos evangélicos, católicos e religiosos diria que esse é o retrato de um mundo sem Deus, sem ética e princípios. Mas como este “mundo líquido” tem “derretido” a vida das igrejas? O que está acontecendo em nossos arraiais e nos demais contextos religiosos?

Há um novo perfil religioso, principalmente evangélico, no ar. Há uma tendência de ruptura de vínculos generalizado, um “derretimento” de relações. Muitos cristãos já preferem não ter compromisso com nada. Há pouco compromisso doutrinário e teológico. Muitos líderes e pastores afirmam que “doutrina e teologia” não são prioridade. Não possuem solidez em nada. É surpreendente!

No mesmo caminho, grande parte dos chamados cristãos não entendem o que quer dizer Igreja. Desconhecem a advertência de Hebreus 10:25, “não deixemos de nos reunir como igreja …” Não sabem que não é possível ser cristão sem igreja. Quem não está no corpo não pode estar ligado à cabeça (Cl 2:19). Não se lembram de que a oração de Jesus é o “Pai Nosso” e não o “Pai Meu”. Esquecem de que é preciso conviver com os irmãos! Assim, nessa nova onda do “derretimento”, muitos vivem como “andarilhos da fé”. Não se submetem à autoridade de ninguém, vivem impulsionados por novas ondas, andando de um lado para outro. Muitos são cristãos televisivos ou digitais: “consomem mensagens cristãs pela internet e pela TV” apenas e mais nada. Alguns são mais “rotativos”: buscam ensino numa igreja Batista ou Presbiteriana, vão numa “reunião de fogo” de uma igreja pentecostal e procuram um “louvor ungido” de uma comunidade. Mas eles mesmos não têm convicção, não têm compromisso, não têm posição doutrinária, não prestam contas de sua vida a ninguém. Vivem aleatoriamente. É a doença da atomização pós-moderna, o desvinculamento doentio que também aflige a própria igreja. Como
consumistas inveterados, em busca de prazeres epidérmicos e hipersensorializados, esses reféns do sistema fogem de conflitos, acomodam-se em sua zona de conforto e buscam apenas uma experiência social mais agradável. Arrependimento, comunhão, perdão, levar a cruz, submissão, sofrimento pela fé, perseguição são palavras preciosas da história da fé cristã que têm desaparecido do novo cenário! Será que isso tem reversão?

Essa tendência assustadora transborda os limites evangélicos. Faz parte de um mundo nominal de católicos, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas etc. O nominalismo inócuo não é monopólio evangélico. Fora dos limites do mundo religioso, a realidade não é nada diferente. Hoje há um desinteresse por carreiras nobres e tradicionais em termos profissionais (os EUA não têm enfermeiros, o Brasil não tem cientistas e engenheiros suficientemente), há uma ausência de patriotismo e sentimento
nacional, há uma fragilização geral dos vínculos historicamente importantes para a caminhada da civilização. Nesse vazio do “pertencer”, nessa lacuna de identidade social, multiplica-se o desespero da busca de um relacionamento minimamente humano e transcendente. Esta é a razão porque a prostituição virou uma praga e o sexo casual virou palavra de ordem. As cervejarias e os vendedores de bebidas não param de comemorar suas vendas. A alienação por meio das drogas lícitas e ilícitas toma conta da sociedade. Onde viemos parar?

Como agir diante disso? Em primeiro lugar é preciso dar uma parada. Vamos pensar e refletir profundamente sobre o que estamos vendo. Em segundo lugar, precisamos desesperadamente de investimento em família. Chega de ativismo religioso em detrimento do cuidado familiar. Quem não cuida da família nega a fé e é pior do que o descrente (1 Tm 5:8). Em terceiro lugar, devemos falar e pregar abertamente contra essa atitude equivocada de muitos “andarilhos da fé”. Pessoas sem compromisso não podem ministrar na igreja, como se nada estivesse acontecendo. Finalmente, contra essa atitude indevida, devemos praticar e valorizar reuniões de pequenos grupos para enfatizar e dar importância ao relacionamento pessoal e ao mútuo compromisso de comunhão em Cristo. Afinal de contas, se avaliarmos com bom senso e com as Escrituras Sagradas este comportamento desta sociedade que perdeu o rumo, veremos que ele precisa ser urgentemente realinhado em sintonia com a Palavra divina.

Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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