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Será que o homem foi criado há 6 mil anos?

Como entender a Bíblia neste assunto

Luiz Sayão - 24/07/2017 10h01

Será que o homem foi criado a 6 mil anos / Foto: Divulgação

Pesquisas arqueológicas têm confirmado que a civilização humana tem pelo menos mais de 10 mil anos. Estudos nas ruínas de Jericó encontraram objetos que possuem mais de onze 11 anos. Pesquisas mais recentes feitas na Turquia, em Göbekli Tepe, revelam ruínas até mais antigas, podendo ultrapassar 12 mil anos. Portanto, é razoável concluir que a civilização humana, como a conhecemos, tem cerca de 15 mil anos.

Todavia, muita gente tem tentado calcular a idade da Terra e da espécie humana através de um estudo detalhado das genealogias da Bíblia, a partir do livro de Gênesis. Geralmente, a conclusão imediata sugere que o primeiro homem foi criado por Deus há cerca de 6 mil anos. Como entender a questão? Será que essa metodologia é adequada? A Escritura Sagrada tem o propósito de nos trazer esse tipo de informação?

Vamos examinar a discussão.

No século 17, o famoso arcebispo de Armagh, Irlanda, James Ussher (1581-1656), fez uma avaliação detida e pormenorizada da cronologia descrita no livro de Gênesis (5 e 10) e também examinou outros textos bíblicos para definir com precisão a cronologia bíblica. Um de seus propósitos principais era achar com exatidão o dia da criação de Adão, o primeiro homem.

Depois de muitos cálculos o arcebispo Ussher chegou à conclusão de que Adão fora criado num domingo, no dia 23 de outubro de 4004 antes de Cristo. A partir desse ponto de partida, diversas outras datas da cronologia da história bíblica foram definidas pelo religioso irlandês e pelos sucessores do seu método de contagem.

Com base em seus cálculos, Ussher acreditou haver descoberto, por exemplo, que, no dia 10 de novembro de 4004 a.C., Adão e Eva haviam sido expulsos do Paraíso. Além disso, ele afirmou que o dilúvio teria acontecido em 2358 a.C. Essa sugestão, muito atraente para interessados em escatologia, chegou até a levar algumas pessoas a concluir que Jesus teria nascido exatamente 4000 anos depois de Adão, e que provavelmente a sua Segunda Vinda ocorreria 2 mil anos depois.

Com essa matemática escatológica, depois de 6 mil anos, poderíamos presenciar a apoteótica inauguração daquilo que foi chamado de milênio sabático. Seria o descanso perfeito da Terra, no sétimo milênio a partir da criação.

Tais esforços têm se mostrado interessantes e revelam que, no decorrer dos séculos, houve um sincero desejo de harmonizar a cronologia presente nos textos bíblicos com a da história secular. Todavia, não há dúvida de que os resultados desses esforços estão equivocados. O cálculo elaborado por James Ussher trabalhava com a aritmética simples da contagem dos anos, lidos literalmente nas genealogias descritas em Gênesis. O problema é que, como muitos de nós fazemos ainda hoje, o famoso arcebispo leu Gênesis como se ele tivesse sido escrito no tempo e na cultura da Irlanda do século 17.

Há diversas razões pelas quais suas conclusões não estão certas:

1. As genealogias eram intencionalmente incompletas

O livro de Gênesis tem nítidas intenções literárias em sua organização. Um dos elementos mais importantes do livro é a questão dos números e seu significado
literário. Um dos números que merece destaque em Gênesis é o 10, que pretende dar o sentido de algo completo. Tudo indica que a lista genealógica do capítulo 5 traz 10 gerações especificamente escolhidas, e não todas as gerações envolvidas na história. Ou seja, elas não eram completas. Trata-se de uma lista selecionada.

É muito provável que haja “saltos” intencionais entre uma geração e outra. Do ponto de vista do livro, o importante é apresentar os “dez” selecionados. Isso ainda é corroborado pelo fato de que o verbo hebraico “yalad”, traduzido geralmente por “gerar”, significa também “ser avô” ou “ser antepassado”. Portanto, há mais gerações em Gênesis 5 e 10 do que imaginamos a princípio.

2. O problema dos manuscritos antigos

Poucos sabem que há muita discordância de cifras numéricas entre o Texto Massorético (Hebraico), o Pentateuco Samaritano e a Septuaginta (Grego). Pelo Texto Massorético, por exemplo, o dilúvio teria acontecido em 1656 a.C. depois de Adão, já no Pentateuco Samaritano seria no ano 1307 a.C., e na Septuaginta em 2262 a.C. Isso mostra que os manuscritos bíblicos antigos distintos registraram números variados, ainda que devamos preferir o Texto Massorético.

Todavia, é difícil ser dogmático sobre o assunto, exigindo um literalismo na interpretação dos números.

3. O calendário pode ser distinto do nosso

Não sabemos que tipo de calendário teria sido usado para contar os anos da vida dos descendentes de Adão. Não parece haver dúvida de que o texto sugere que eles viveram muito tempo. Todavia, se o texto tiver de fato uma tradição oral muito antiga, não sabemos exatamente quanto vale cada um daqueles anos quando comparado aos nossos. Isso poderia mudar o valor significativamente.

4. Os paralelos culturais e literários podem indicar outra direção

Geralmente imaginamos que a função dos números é apenas matemática. Entretanto, isso pode ser diferente quando vemos o significado dos números em outras culturas. A função pode ser completamente distinta. Os números podem ser usados em um sentido simbólico e não literal.

É interessante observar que metade dos nomes de Gênesis 5 morreram com uma idade que é múltiplo de 5. Além disso, devemos considerar também a questão do uso literário dos números. No português de hoje quem diz que já errou “mil vezes” e conhece um amigo “há séculos” não está mentindo nem aumentando os fatos. Trata-se de um simples uso de hipérbole. Todos sabem que nem sempre usamos os números com exatidão. Se alguém perguntar a sua idade, você jamais responderá que tem 23 anos, 4 meses, 12 dias, 5 horas, 18 minutos e 27 segundos. Quem age assim será visto como louco. Mas, na hora de pagar uma conta precisamos ser exatos no cheque preenchido. O contexto muda tudo.

Quando vemos textos antigos semelhantes aos de Gênesis, como os da cultura suméria, vamos encontrar listas genealógicas de reis que teriam vivido milhares de anos. Hoje sabemos que essa era uma forma “majestática” de prestar honra ao rei. Era algo parecido com a expressão “ilustríssimo senhor”, usada em cartas hoje. Será que o senhor para quem se está escrevendo é de fato “ilustríssimo”? Isso corresponde aos fatos? O exemplo dispensa maiores explicações.

Diante disso, há grande chance de os números nem sempre serem usados no sentido literal na Bíblia. Tal elucidação é importante para destacar algumas considerações e lições quanto à interpretação das Escrituras, particularmente levando em conta o exemplo do ano da criação de Adão.

Em primeiro lugar, deve-se evitar leituras imediatistas e simplistas de qualquer texto bíblico. É necessário pesquisa e leitura aprofundada para compreender o significado de um texto. A sinceridade e o coração são insuficientes.

Deve-se sempre considerar que temos a tendência de forçar nossa visão de mundo e a maneira de pensar na leitura do texto bíblico. Isso é problemático, pois impede que ouçamos a Palavra, e faz com que o texto se torne apenas um reflexo do que já pensamos.

As considerações sobre o ano da criação de Adão não nos devem fazer rejeitar a busca da relação devida entre a Bíblia e a história. Se fizermos todos os “descontos possíveis”, pelos relatos bíblicos a cronologia da história da civilização humana deve ter um pouco mais de 10 mil anos. Isso concorda com a história geral, quando consideramos Jericó, Göbekli Tepe, a Suméria, o Egito etc. À luz dos fatos, a Bíblia e a história não apresentam discrepâncias.

Por outro lado, não se pode exigir detalhes que o texto não “promete” em si mesmo. Nós não sabemos exatamente quando Adão foi criado. Os relatos de Gênesis têm elementos históricos, poéticos e preponderantemente teológicos. Se procurarmos o que eles não tinham intenção de revelar e não escutarmos o que eles pretendem ensinar, sairemos perdendo em nossa caminhada.

Infelizmente, muito da discussão popular entre Bíblia, História e Ciência é um equívoco desnecessário.

* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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