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Coração Miudinho

Minha mãe tinha muitas frases e ditos que já não escuto mais e, para minha surpresa, a nova geração não sabe o que significa

Yvelise de Oliveira - 15/05/2018 09h26

Minha mãe usava expressões que eram só suas, de maneira que seus filhos e netos continuam a usar até hoje. Quando escuto a mim mesma dizendo para um filho ou um neto “vem comigo,
coração miudinho” vejo minha mãe sorrindo.

Minha mãe tinha muitas frases e ditos que já não escuto mais e, para minha surpresa, a nova geração não sabe o que significa: “se enforcou com a própria corda”; “solta o tigre que o tigre volta”; “quem não se enfeita, por si se enjeita”; “quem não escuta conselho, escuta coitado”; “a rico não devas, a pobre não prometas”; “barriga cheia, goiaba tem bicho”; “gato escaldado tem medo de água fria”.

Problema pra minha mãe se resolvia com:

— Conta pra mim, eu estou ouvindo. Enquanto eu escuto vou fazer uns bolinhos deliciosos para o lanche. Vamos tomar com café com leite.

Mamãe… quem iria resistir aos seus doces, seu tempero, sua comida caseira cheirosa e feita com amor…

Minha cunhada era magrinha, um verdadeiro desafio para minha mãe:

— Como vou conseguir colocar um pouco de carne nesse monte de ossinhos?

— Come, Guida, você vai acabar fraca do pulmão. Tem que comer de três em três horas.

Haja sopa de mocotó, caldo de feijão, sopa de entulho com muito paio e carne de peito, pudim de claras, ovos nevados, doce de abóbora com coco, mingau de maisena com muita canela.

Mamãe nunca ouviu falar de colesterol alto. Tudo levava muita manteiga e muita gema de ovo. Fritura, todas elas, na gordura de coco carioca. Uma lata azul bem grande e com um cheiro forte de coco e a gordura bem branquinha.

Feijão se temperava com gordura de porco, que também se usava para fazer massas — de empada, de pastel, de torta de maçã… Tudo cheiroso e feito na hora. Domingo era dia de arroz de lula com camarão-lixo (bem miudinho e frito até parecer biscoito por cima do arroz), peixe assado com muito coentro e molho de gemas. Tudo servido por ela e pelas empregadas da casa, que faziam parte da família e as crianças tinham de obedecer.

Pela lógica de hoje eu deveria ser gorda; mas apesar de toda a fartura e o total desinteresse em comidas light — coisa que nem existia naquela época — ninguém era nem gordinho na minha família.

Fazíamos quatro refeições por dia. Caso fossemos dormir mais tarde, a gente fazia uma ceia antes de dormir. Mas esses hábitos não eram exclusivos da minha casa. Os vizinhos das outras casas da vila onde me criei trocavam quitutes em pratinhos que não podiam ser devolvidos vazios. Era falta de educação.

Mamãe jamais permitiu que tomássemos refrigerantes:

— Que absurdo!!! Em um país tropical e cheio de frutas tomar refrigerantes…

Muito suco de tamarindo, fresquinho e com açúcar — não existiam adoçantes — os sucos eram feitos com frutas da época.

Minha mãe não acreditava em nada muito industrializado, e até a manteiga lá em casa era de nata batida. Nesse tempo, o leite ainda tinha nata, vinha em garrafa de vidro com tampinha de alumínio. O leiteiro deixava na porta junto com o pão e, acreditem, ninguém roubava nada!

Como é que tudo mudou tanto? Nem posso imaginar como minha mãe viveria no mundo de hoje onde certamente não existe mais o glamour e as mulheres já não são cortejadas, a comida é congelada e o rei da casa é o micro-ondas.

Para meus filhos, a comida da minha casa é um veneno, cheia de radicais livres e gorduras saturadas. Mas como não éramos gordos? Como meu pai morreu com 90 anos e minha mãe com 86?

Será que ninguém mais sabe fazer coisas doces e delicadas? Vamos perguntar se alguém compra hoje, nas padarias, rosquinhas de São Lourenço ou pãezinhos de Provença?

Foi a Dona Geralda, a nossa vizinha, que nos apresentou na infância às delícias árabes: quibes, esfirras, trouxinhas de couve com carne moída e arroz; que delícia!

Tive uma infância muito normal e saudável, fui amada e cuidada. Minha mãe sempre me fez sentir especial em tudo. Cresci confiante em mim e na vida.

Embora meu irmão fosse muitas vezes mais bonito do que eu, não fiquei ressentida, ao contrário, sempre acreditei que meu cabelo iria se encher de cachos quando eu ficasse mocinha — era o que ele me dizia — e que se dormisse com um pregador no nariz iria ficar como o dele, bem fino e aristocrático.

Sempre fui pequena de pés e mãos miúdas, o corpo ideal para o balé que comecei a estudar com 7 anos.

Como sempre fui o “coração miudinho” da minha mãe, a vida me parecia sempre doce e fácil de ser levada. Que pena que a gente cresce, casa, tem filhos, sofre e aprende, e como aprende! Que viver não é nada fácil.

— Mamãe, eu hoje quero ser, só hoje, em minha saudade, guardada pela solidez de meus altos muros, seu “coração miudinho”.

Afinal, nunca se pode demonstrar o que realmente se sente. Como decepcionar quem nos crê assim tão forte e capaz de arcar com tudo e levar a todos?

Afinal, o que me fez crer ser capaz de guardar o mundo e cuidar de todos?

Não, não quero mais ser guardiã de ninguém, de nada, quero apenas e somente ser, viver e estar onde quiser.

Não acredito até hoje em dietas lights, muito menos em comidas que não têm sabor.

Sou filha de Dona Marina e viver sempre será, para mim, um prazer; amar e ser amada. Com certeza foi um bom começo e vai ser um ótimo final.

Yvelise de Oliveira é Presidente do Grupo MK de Comunicação; ela costuma escrever crônicas sobre as suas experiências e percepções a cerca da vida. Há alguns anos lançou o livro Janelas da Memória, um compilado de seu material. Atualmente está em processo de finalização de uma nova obra, Suspiros da Alma.
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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